Por Hyury Potter, compartilhado de The Intercept Brasil –
“LEMBRE-SE SEMPRE que para o Alicerce você é, ao mesmo tempo, agente de transformação e objeto e alvo do nosso cuidado”, diz um trecho do contrato de trabalho dos professores do grupo Alicerce, startup de aulas de reforço escolar que tem entre seus principais investidores e garoto-propaganda o apresentador da Globo Luciano Huck.
No dia 20 de março, dezenas de trabalhadores da instituição souberam exatamente o que significava estar aos cuidados da empresa. Todos foram dispensados, por mensagem de WhatsApp, após o fechamento obrigatório das escolas devido a quarentenas por conta do coronavírus impostas nos estados onde a empresa atua: São Paulo, Paraná e Minas Gerais.
Ao contrário de muitas pequenas empresas que não têm como pagar ou ajudar seus funcionários em tempos de pandemia, o Alicerce alardeia um caixa gordo. Além de Huck, o grupo também tem outros investidores ilustres como o economista Armínio Fraga e anunciou um aporte de R$ 20 milhões no final do ano passado para ampliar o número de unidades da empresa para 70 até o final de 2020.
Os mais de 400 professores que trabalham, ou trabalhavam, para as 37 unidades do grupo são microempreendedores individuais, os MEI. Ou seja, na prática, são pequenas empresas com um contrato de serviço com uma grande empresa e por isso não têm os mesmos direitos e benefícios que um trabalhador formal contratado, como seguro-desemprego, férias remuneradas e 13º salário.
Essa terceirização da atividade-fim, uma maneira de empresários reduzirem custos trabalhistas, é tratada no Alicerce como uma “oportunidade para empreender”, como descreveu o próprio CEO da startup, o empresário Paulo Batista, quando o entrevistei. No dia 20 de março, quando alguns professores de uma das unidades da escola no Paraná, reclamaram em um grupo de WhatsApp que estariam sendo demitidos, Batista respondeu:
“Veja. Não existe ‘demissão’ de PJ [pessoa jurídica]. E nenhum de vocês foi afastado do Alicerce. Apenas o contrato de vocês reza que ganham por período efetivamente trabalhado. Com o fechamento dos polos, não tem como vocês trabalharem. E não tem como remunerar todos os líderes de todo o Brasil sem dar aulas”.
Quando o entrevistei na quarta-feira da semana passada, a história mudou. Batista disse que nos dias seguintes a empresa ofereceu opção de trabalho remoto, mas “nem todos aceitaram”. Os professores com que conversei, no entanto, afirmam que não receberam convite para trabalho remoto ou qualquer outro tipo de atividade.
Já o garoto-propaganda Huck, que ajudou tanto a angariar alunos para startup quanto professores ao elogiar publicamente a empresa, respondeu ao meu pedido de comentários para o caso dizendo que “é entusiasta e apoiador da iniciativa empreendedora que visa qualificar o contraturno escolar em regiões menos assistidas, mas que não tem nenhuma função e não sabe detalhes da gestão da empresa”.
Professores também são faxineiros e porteiros
Em seu site, a empresa se define como uma startup educativa que oferece um complemento educacional presencial com “um método de ensino totalmente inovador”. Para os professores, chamados de líderes no organograma da empresa, o grupo se apresenta como uma oportunidade para professores se tornarem “empreendedores” – o que inclui acompanhar as crianças enquanto os pais não chegam e até limpar banheiros e salas de aula. Nada disso, é claro, é descrito no contrato de trabalho assinado pelos professores ou relatado nos treinamentos a que são submetidos antes de começar a trabalhar na empresa, como me disseram diversos professores sob a condição de anonimato.
“A gente tem que cuidar de todo espaço. Só há limpeza nos fins de semana, então o que era regra é a gente ter que limpar a sala, lavar banheiro e fazer outras tarefas durante a semana. E só fazíamos isso depois das aulas, então era um período que não entrava na contagem de horas trabalhadas para o pagamento”, diz o professor João, que teve o nome alterado nesta reportagem por temer retaliações.
Para deixar o filho em uma unidade Alicerce, os pais e responsáveis pagam pacotes mensais que vão de R$ 149,90 a R$ 199,90. Em média, são sete professores por unidade. Eles são remunerados por turnos de quatro horas e meia de trabalho, que dão R$ 62,50 de pagamento pelo serviço — menos de R$ 14 por hora. Como comparação, o último acordo de convenção coletiva do Sindicato dos Professores do Paraná estipula entre R$ 16 e R$ 22,60 o valor a ser pago por hora para professores do ensino fundamental e médio, respectivamente, além de direitos trabalhistas básicos como férias e pagamento de horas extras. O valor pago para os professores do Alicerce leva em consideração apenas as horas dentro de sala, não contabilizando o tempo que eles passam em tarefas extras de limpeza e organização.
Maria, universitária que começou a trabalhar no Alicerce no Paraná em outubro do ano passado, conta que chegava a ficar até oito horas a mais por mês tendo que fazer atividades extras como limpar a sala de aula ou mesmo esperar os pais dos alunos menores. A renda das aulas como professora de inglês no Alicerce, cerca de R$ 1.000 por mês, era a única que ela tinha, até ser dispensada no dia 20.
“Todos os dias eu tinha que ficar pelo menos uma hora a mais para arrumar a sala de aula, limpar e muitas vezes porque esperava o pai de algum aluno menor chegar. Nos treinamentos e palestras, essas funções nunca ficaram muito claras e, no contrato que assinamos, isso também não está citado. Agora, com a dispensa, estou esperando a poeira baixar para ver o que posso fazer, mas infelizmente não deram nenhuma garantia para nós”, me disse Maria.
Ao ouvir as denúncias de trabalho extra não remunerado e de que professores estariam lavando banheiros e limpando salas, funções que não estão previstas no contrato que o Alicerce oferece, Batista defendeu as atividades e afirmou que são os próprios profissionais que fazem questão de exercer essas funções. “Eles que coordenam a unidade que dão aula, então eles não têm uma faxineira para serví-los, não têm um porteiro para serví-los. Eles não são obrigados a fazer nenhuma das atividades que você mencionou [como lavar banheiros e atuar como porteiros da instituição]”, diz Batista. “Mas eles têm liberdade de fazer isso e muitos gostam e acabam enxergando uma oportunidade empreendedora, uma oportunidade de apoiar outro colega, cria-se um clima de trabalho em equipe”.
Esse tipo de negócio criado completamente com trabalhadores terceirizados foi uma das brechas criadas na Reforma Trabalhista de 2017. O único auxílio possível seria o previdenciário, mas para quem já está prestando serviço há mais de um ano, explica Fabio Queiroz Telles, professor de direito do trabalho na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. No entanto, Telles diz que é possível configurar tanto o acúmulo de trabalho quanto o vínculo empregatício e desvio de função quando o trabalhador realiza tarefas que não estão explicitadas no contrato, como é o caso dos professores do Alicerce.
‘Pode chamar de tudo, menos de escola’
O presidente da Federação dos Professores do Estado de São Paulo, Celso Napolitano, explica que, como a Alicerce é registrada para contraturno, a fiscalização é mais branda e inclusive a exigência de pagamento de piso da categoria é dispensada.
“O que acontece é que como não é uma escola formal, não está sob a fiscalização do setor educacional. É apenas uma empresa com alvará de funcionamento. Eles podiam abrir um boteco, uma barbearia, mas resolveram abrir um local para receber crianças. Então você pode chamar de tudo, menos de escola”, diz Napolitano.
Outra queixa comum que ouvi dos professores é a necessidade de trabalhar com turmas acima de 20 alunos, com crianças de 6 a 15 anos e, em alguns casos, até de quatro anos, o que exigiria uma formação específica. Em entrevista, o CEO, Paulo Batista justificou-se dizendo que o professor que não “se sentir à vontade” com a mistura de crianças de idades diferentes em sala tem a opção de não trabalhar no Alicerce.
O CEO ainda defende que a mistura de alunos de diferentes idades seria “uma recomendação da linha montessoriana”, e cita que “alguns líderes têm dificuldade em lidar com esse conceito”. Porém, para Paulo Afonso Ronca, doutor em psicologia educacional pela Unicamp, o mais provável é que seja a gestão do grupo Alicerce que tenha dificuldades em lidar com o método educacional criado pela médica e pedagoga italiana Maria Montessori (1870-1952).
“O método da professora Maria Montessori foi criado no final do século 19 e propunha algumas coisas nesse aspecto de ensino mais livre, mas era essencialmente para a escola e para ser usado com bom senso. Cada um pode fazer o que quiser em um local que se propõe a receber alunos após a escola, mas não venha me dizer que é método montessori. Essa prática feita de forma errada pode causar até malefício para as crianças, provocar desinteresse escolar”, afirma Ronca
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