Corpo da casa (coluna da Appoa)
Por Flaviana Tannus (*), compartilhado de Sul 21
na foto: Fernanda Torres em cena gravada dentro da casa da família Paiva em Ainda Estou Aqui | Foto: Divulgação
Assisti duas vezes ao filme Ainda estou aqui, enredo baseado no romance de Marcelo Rubens Paiva. A primeira vez, fui tocada pela inquietação: como, diante da imensa tragédia, Eunice Paiva não se tornou vítima? Este questionamento central da trama reverberou e depois de algum tempo, voltei ao cinema para rever detalhes pelas entrelinhas, pelos hiatos. Talvez numa tentativa de resgatar algo que escapou como folhear um álbum de fotografias no esforço de costurar uma história. Revi no filme um Leblon restaurado pelos efeitos visuais sofisticados da filmagem e fotografia que parte da luz à sombra, na precisão da atuação dos atores num cenário rigorosamente engendrado. Reparei que, após o término da história, antes dos créditos finais, uma câmera desliza vagarosamente pelo corpo da casa vazia mostrando os vestígios do tempo deixados nas paredes pelos objetos, principalmente as obras de arte e estantes de livros que adornavam a casa dos Paiva. Será que a câmera deslizou na tentativa de resgatar o esvaziamento causado pelo absurdo do desaparecimento, da aniquilação? O que esquadrinhar detalhes nos espaços vazios desperta? O filme é uma obra de arte.
Maria Lucrécia Eunice Facciola Paiva era formada em letras pelo Mackenzie, mas sua rota seguiu uma trilha possível para uma mulher na década de sessenta casada, com cinco filhos. Tinha aspirações libertárias, leitora voraz de literatura, intelectual e parceira ativa de um progressista aspirante à democracia sob o imperativo de um regime autoritário e violento. Eunice usava seus talentos no gerenciamento da vida doméstica. De origem italiana, cuidou de seu corpo para não se tornar uma matrona como as mulheres da família Facciolla e sua receita principal era um prato francês: suflê. Suflê não é um prato qualquer. Só ela sabia o segredo para a receita não murchar. Serão dois detalhes que insinuam uma certa subversão à sua herança ancestral? Uma certa disposição ao novo? Se por um lado Eunice era dona de casa exemplar, com o desaparecimento de Rubens Paiva, inventou-se. Para não ruir e desabar a família, com firmeza, rigor e decisão, sem titubear mudou de cidade e de vida. Desocupou-se da vida doméstica e migrou para um banco de faculdade. Nascia uma nova Eunice, que passou a assinar Eunice Paiva, segundo relato de seu filho no livro que deu origem ao filme. Sua casa e sua família idílica se esvaíram diante do imperativo da aniquilação. De gestuais contidos, de poucas palavras, silenciou o horror vivido por sua família por não poder enterrar o marido morto e encerrar um capítulo da história da família. Criou voz ao formar-se em direito. Suas ideias progressistas encontraram assento na luta pelos direitos humanos. Especializou-se em direito indígena, foi expressiva consultora do Banco Mundial e da ONU. No exercício da lei, conseguiu, após vinte e cinco anos, que o governo federal emitisse o atestado de óbito de Rubens Paiva e com isso o direito de abrir e encerrar o inventário. Mas como diante de uma tragédia Eunice Paiva não se vitimizou? Com o movimento da rotina cruelmente interrompida e o corpo dilacerado pelos dias encarcerados, como Eunice não padeceu?
O ato de enterrar os mortos é um ritual tão antigo como a história da civilização humana. Com o enterro, cuida-se da memória e confere-se ao morto um lugar. Num lampejo, enlacei Eunice à tragédia de Antígona de Sófocles. Se Antígona decidiu transgredir o decreto de Creonte e escutou o apelo íntimo dos deveres ancestrais para enterrar o irmão morto, Eunice, diante do absurdo do desaparecimento do corpo do marido cruelmente assassinado, da ausência de um corpo para enterrar, escolheu outra via para dar lugar ao seu morto: sua luta foi através dos direitos indígenas de posse à terra. O direito de um lugar.
A casa no filme parece um personagem. Walter Salles buscou no Rio de Janeiro uma casa parecida com a casa real da família Paiva, que não existe mais. Ele frequentou o endereço da Delfim Moreira em sua juventude e ali se deparou com uma casa pulsante, viva que abrigava os debates das ideias progressistas e democráticas. O diretor afirmou que nunca esqueceu da casa que estava sempre aberta, sem chave na porta, como a metáfora da banda de Moebius, que dentro e fora são indissociáveis. Era abrigo de uma nova música, nova literatura, novo mobiliário e nas paredes obras de artistas que traduziam um Brasil original e independente que fora interrompido pelo golpe militar. Foi o último lugar em que Rubens Paiva foi visto vivo. Sua ausência ficou incorporada nas entranhas da casa.
Ao final do filme, quando a câmera desliza a partir do quarto do casal pelo corpo da casa vazia, parece que a filmagem termina com a marca na parede deixada por uma pintura de Hélio Oiticica: Metaesquemas. Na obra, figuras geométricas monocromáticas parecem flutuar. Com essa experimentação pictórica em movimento, o artista parecia provocar um desajuste no olhar, causando uma certa vertigem. Como se as figuras “entre” estivessem a ponto de cair ou saltar num passo de dança. Se Walter Salles buscou uma casa e detalhadamente restaurou e adornou com objetos da família Paiva, ao esvaziá-la esboçou uma ausência, ressaltou o desaparecimento. Mas a que o vestígio deixado na parede pela obra de arte nos convoca? Talvez, com os rastros do tempo demarcados na parede, o diretor insinuou que assim como a obra de Oiticica, as ideias progressistas continuam vivas em outro lugar.
Se Antígona morreu ao subverter um imperativo autoritário e seu ato inaugurou o sujeito de direito, Eunice, ao trilhar a cartografia em defesa dos direitos humanos, concedeu ao marido morto sem corpo um lugar de direito, mas rascunhou um lugar para si. Com a vida de Rubens amputada, os princípios progressistas gestados e vividos no corpo da casa foram mantidos em outro lugar. Se os rastros na parede deixados pela obra de Oiticica causavam uma certa vertigem no olhar e indicava que a casa dos Paiva era um lugar de experimentação, a ausência da obra parece insinuar que para sustentar e suportar um lugar inaugural, abrigo do novo, foi preciso autoria e assinatura ao afirmar: Ainda estou aqui!
P.S. Eunice Paiva faleceu no mesmo dia, cinquenta anos depois que a AI 5 foi assinada pelos militares.
(*) Psicanalista, membro da Appoa.
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