Falta de regras e de monitoramento permite capturas em excesso e pode levar pescados tradicionais a desaparecerem do mercado
Por Oscar Valporto, compartilhado de Projeto Colabora
Pescadores com lagostas no litoral do Ceará: escassez cada vez maior e dificuldade na captura ameaçam colapso da pesca (Foto: Christian Braga / Oceana)
O que tem em comum a corvina, peixe encontrado em mercados e feiras do país com preço abaixo de R$ 20 o quilo, com a lagosta, crustáceo produto de exportação, valorizado nas mesas de todo o mundo e que pode custar mais de R$ 100 o quilo? Os dois pescados estão ameaçados de desaparecer dos mercados porque, nos últimos anos, a captura foi muito maior do que a sua capacidade de reprodução. “A corvina e a lagosta estão com seus estoques gravemente sobrespescados e não há iniciativas para conseguir o equilíbrio necessário para evitar um colapso econômico. Talvez mais grave, entretanto, é que o Brasil não tem qualquer controle sobre dezenas e dezenas de espécies marinhas que são alvo da pesca”, alerta o oceanógrafo Martin Dias, diretor científico da Oceana, organização internacional focada exclusivamente nos oceanos.
A Auditoria da Pesca da Oceana, lançada ano passado com dados de 2021, mostra que, de 117 espécies exploradas pela pesca comercial marinha no Brasil, apenas oito tinham sua situação cientificamente avaliada. E, destas, seis tinham estoques em sobrepesca, quando o nível de pesca é maior do que a capacidade do pescado de se reproduzir ao nível anterior, ou estavam sobrepescados, ou seja, quando os pescadores tiram tanto peixe do mar, que começa a haver uma significativa redução dos estoques, da população de peixes numa região. “Não chega a ameaçar a extinção da espécie porque, há permanecer uma situação assim, a pesca vai ser tornar antieconômica e vai parar. E eventualmente os pescados vão voltar. Mas isso tem impacto na segurança alimentar e tem impacto social e econômico, além de afetar o equilíbrio ambiental”, explica Dias.
Neste Dia Mundial dos Oceanos (8 de junho), a única boa notícia para as espécies marinhas alvos da atividade pesqueira no Brasil é que está aumentando o nível de informações sobre os estoques. Mas as informações reunidas pela nova auditoria da Oceana são preocupantes. “Resultados preliminares da auditoria da pesca da Oceana indicam que 3 em cada 4 estoques não são cientificamente avaliados. Houve um crescimento no conhecimento sobre os estoques entre 2022 e 2023. Mas o que descobrimos é que a cada avaliação de estoque, encontramos um estoque a mais em situação ruim. Hoje, temos informações sobre cerca de 30 estoques: 70% deles estão com a sua biomassa muito reduzida – sobrepescados”, adianta o diretor científico da Oceana.
A nova Auditoria da Pesca também mostra que mais da metade das pescarias do Brasil não possui um bom conjunto de regras para promover o uso sustentável dos recursos pesqueiros e que metade das pescarias brasileiras não tem qualquer monitoramento. “Ou seja, não sabemos quanto de peixe está sendo produzido, por quem, com qual método e nem aonde”, destaca Martin Dias. Isso indica que serão necessários anos para que seja possível ter uma série histórica de dados confiáveis. E, enquanto, isso, os dados conhecidos mostram a ameaça de colapso para a atividade pesqueira de muitos tipos de pescado.
Estudo recentemente publicado por cientistas pesqueiros mostra que os estoques de pescados nos mares das regiões sudeste e sul vem piorando muito ao longo dos anos. O gráfico acima mostra a proporção dos estoques pesqueiros que eles analisaram (um total de 42 estoques) que se encontram em boas condições (verde) em zona de alerta (amarelo) ou já em situação de perigo (vermelho). Praticamente não existem mais estoques pesqueiros em situação boa. A situação já foi pior, como nos anos 2010-2015, como se nota. De acordo com a Oceana, o cenário mais provável é que muitas empresas pesqueiras já tenham “quebrado” por escassez de pescado e, hoje, com menos barcos, os estoques estão começando a se recuperar.
Menos lagostas e mais riscos
As avaliações da Oceana indicam que o estoque de lagostas caiu 83% desde o início da pesca. Com isso, pescadores artesanais no Nordeste do Brasil vêm trocando o método tradicional de pesca – o manzuá, tipo de armadilha jogada pelos pescadores para a captura da espécie – pela pesca de mergulho com compressores de ar. De acordo com o pescadores, com a escassez de lagostas, a pesca com manzuá tem ficado cada vez mais rara. “Com os estoques severamente sobrepescados, quem vive do comércio da lagosta-vermelha vai fazer a captura em águas cada vez mais profundas e mais longe da costa”, relata o Martin Dias.
O que podemos dizer é que a maior parte dos estoques pesqueiros que exploramos não tem um diagnóstico preciso da situação biológica. Isso significa que simplesmente não se sabe se estão em situação boa ou se estão em esgotamento
Martin DiasOceanógrafo e diretor científico da Oceana
A própria Marinha vem se preocupando com esse método ilegal, promovendo encontros para alertar os pescadores sobre o perigo. De acordo com a força naval, o uso de compressor de ar para mergulho é um método precário, que coloca em risco os pescadores, mas é uma alternativa mais barata na comparação com equipamentos sofisticados de mergulho. De qualquer forma, a Marinha alerta que “a captura acaba sendo feita de maneira predatória, já que apanha lagostas de todos os tamanhos”. O aumento da pesca com mergulho – no lugar do manzuá – chamou a atenção dos militares pelo aumento de acidentes. Cerca de 15 mil pescadores sobrevivem diretamente dessa atividade.
As exportações de lagosta geram cerca de R$ 375 milhões de reais em divisas todos os anos – é o produto pesqueiro mais importante da balança comercial brasileira. O governo não estabelece uma cota para o pescado do crustáceo e as capturas de lagosta oscilam entre 5 e 6 mil toneladas anuais. Mas, de acordo com a Oceana, os cientistas atualmente recomendam que as capturas anuais deveriam ficar em 3.250 toneladas de lagosta – capturas acima de 4.333 toneladas anuais já colocariam o estoque em risco. “A atividade pesqueira da lagosta está à beira de um colapso econômico que terá enorme impacto social no litoral do Nordeste”, destaca o diretor da Oceana.
Já em 2023, o Ministério da Pesca – recriado no Governo Lula – chegou a anunciar que passaria a permitir a pesca de lagostas somente com 14 centímetros de cauda (a parte com mais carne, mais saborosa e valiosa do crustáceo), para melhorar a reprodução da espécie, garantindo que elas crescessem mais. O limite máximo atual para capturas é de 13 centímetros – e permanecerá assim pelo menos até o fim do ano pois o governo recuou após a reação de pescadores artesanais e industriais, para quem a restrição provocaria o fim da atividade pesqueira da lagosta.
Corvina em situação crítica
O oceanógrafo Martin Dias chama a atenção para o caso da corvina, peixe que enfrenta taxas de captura elevadíssimas. “A situação é muito crítica. A corvina só tem 10% da biomassa original, 90% do estoque foi removido do mar. E a mortalidade por pesca está 50% acima do que deveria. É uma questão de segurança alimentar: a corvina vai sumir da mesa das pessoas” alerta o diretor científico da Oceana, lembrando que a corvina é o pilar da pesca de fundo nas regiões Sudeste e Sul – pesca ao fundo ou de lançamento na rebentação é utilizada em todo litoral, com redes, e permite capturas de várias espécies costeiras.
Outro peixe em situação de sobrepesca é a tainha, também popular em mercados e mesas dos brasileiros, apesar dos estoques em situação melhor do que a corvina e a lagosta. Mesmo assim, foi publicada em fevereiro a Portaria Interministerial MPA/MMA nº 1, que estabeleceu o limite de captura da tainha para a safra 2023 e marcou a retomada da gestão conjunta dos recursos pesqueiros entre os Ministérios da Pesca e Aquicultura e do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Desde 2018, há limites para a captura de tainhas, mas as cotas vêm sendo regularmente desrespeitadas pelos pescadores.
A atual Lei da Pesca tem regras muito frouxas. O estado não monitora a captura, nem fiscaliza os barcos. É quase um livre acesso à pesca: toma seu carimbo e vai matar peixe
Martin DiasOceanógrafo e diretor científico da Oceana
A falta de controle sobre a atividade pesqueira permitiu que esses pescados chegassem a essa situação de colapso. Mas, nos casos da lagosta, da corvina e da tainha, há pelo menos avaliações científicas, matemáticas e estatísticas que possibilitam um panorama deste cenário crítico. Em 70% dos tipos de pescados declaradamente capturados na gigantesca costa oceânica do Brasil, simplesmente não há qualquer avaliação. “O que podemos dizer é que a maior parte dos estoques pesqueiros que exploramos não tem um diagnóstico preciso da situação biológica. Isso significa que simplesmente não se sabe se estão em situação boa ou se estão em esgotamento”, alerta Martin Dias, da Oceana.
A própria auditoria produzida pela organização admite suas limitações. O levantamento dos pescados tem como base a Matriz de Permissionamento das Embarcações Pesqueiras, um controle estabelecido por uma instrução normativa de 2011, do então Ministério da Pesca, para dar autorização a barcos com esta atividade. Os 117 estoques que a auditoria busca analisar são aqueles declarados como alvos pelos proprietários das embarcações, que declaram o tipo de pesca, a área de atuação e o que será pescado. Muitos declaram que têm como alvo “peixes diversos” – o que já dificulta a auditoria. E também ficam de fora todas as espécies que não são pescadas com barcos como caranguejos, guaiamuns, ostras, vôngoles. “O estudo nos dá um panorama da situação e também do total descontrole”, frisa o diretor da Oceana.
O estudo avalia, quando possível, a mortalidade total dos estoque – o quanto foi tirado de peixe do mar, a produção pesqueira – e também o esforço usado na captura para analisar se existe uma situação de sobrepesca. “Se uma embarcação costumava tirar uma tonelada de peixes do mar por semana numa certa área e agora está precisando de dois meses para capturar a mesma tonelada, há uma evidente redução de estoque e podemos afirmar que ele está sobrepescado”, explica Dias.
Órgão regulador
Nos últimos meses, a Oceana vem promovendo uma série de encontros com pescadores artesanais e também industriais para formular uma proposta de mudança na legislação pesqueira para ser apresentada ao Legislativo e ao Executivo. “A atual Lei da Pesca tem regras muito frouxas. O estado não monitora a captura, nem fiscaliza os barcos. É quase um livre acesso à pesca: toma seu carimbo e vai matar peixe”, critica o oceanógrafo Martin Dias, destacando ainda que é mais barato licenciar um barco de R$ 5 milhões para explorar um recurso natural do que emplacar um carro popular.
Nas discussões sobre a legislação pesqueira promovidas pela Oceana, um dos principais problemas apontados é a instabilidade institucional. “A cada ciclo de governo, é como se a gestão da pesca tivesse que recomeçar do zero. É como se a cada 4 anos o Detran ou a Agência Nacional de Águas deixasse de existir e todo o sistema tivesse que começar do zero. Mudar a lei da pesca é fundamental para trazer mais estabilidade institucional na gestão”, argumenta Dias, acrescentando que as falhas na legislação também facilitam a pesca ilegal.
A proposta de uma nova lei da pesca deve ser concluída agora no segundo semestre e os debates apontam para a criação de uma agência reguladora que possa implementar as novas regras – e garantir uma fiscalização regular e um monitoramento permanente. “Da mesma forma que a ANA (Agência Nacional de Água e Saneamento) é responsável pela gestão dos recursos hídricos, essa agência seria responsável pela gestão dos recursos pesqueiras, estabelecendo limites, determinando quem pode usar aquele recurso e com qual objetivo”, explica. “Uma agência tem outras vantagens, além de maior independência do governo, porque tem mais facilidade de fazer parcerias institucionais com órgãos de pesquisa e outras instituições que hoje são fundamentais para o funcionamento dos Comitês das Bacias Hidrográficas, por exemplo”, adiciona o diretor da Oceana.
O oceanógrafo Martin Dias destaca que objetivo dessa gestão pesqueira deve ser o equilíbrio dos estoques: nem peixes demais que acabem afetando a cadeia alimentar, disputando comida, e o ecossistema; nem peixes de menos que não consigam se reproduzir e tornem a pesca antieconômica. “Os estoques precisam estar em boa situação. A sociedade usufrui desses estoques de pescados para alimentação ou para comercialização. E, para mantê-los, é preciso monitorar, através do desenvolvimento de um modelo científico, biológico, estatístico e matemático para calcular esses estoques”, afirma. “Monitoramento é continuidade. `Por isso, além de uma legislação moderna, com regras claras, é preciso de um órgão regulador, de fiscalização e controle”, frisa Dias, defendendo ainda que os órgãos governamentais atuem mais próximos às comunidades pesqueiras.