Coutinho. A crônica de Nelson Rodrigues sobre o craque que morreu

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Por Marcos Pulo Lima, no Correio Brasiliense – 

Conversei com Coutinho pela última vez em 2016. Um longa entrevista por telefone sobre a possibilidade de Gabriel Jesus quebrar o recorde do ídolo do Santos e se tornar o artilheiro mais jovem da história do Campeonato Brasileiro unificado, ou seja, a contar de 1959. Foi um bate-papo inesquecível. Com uma pitada de marra, mas também de simplicidade, de humildade. “Eu não vejo jogo do Palmeiras, só vejo do Santos. Pelo que me dizem, o menino é bom de bola. Eu já fiz a minha vida, parei de jogar há 40 anos, que ele faça a (vida) dele. Não tenho preocupação nenhuma com isso, se ele se tornar o caçula dos artilheiros, vou dar a ele os meus parabéns, nenhum recorde é eterno”. Coutinho continua sendo o mais jovem artilheiro da história do Brasileirão. E com a saída cada vez mais precoce dos nossos talentos pode, sim, ser eterno.

Mas este post é para recordar uma crônica inesquecível escrita por um craque das letras — Nelson Rodrigues — sobre o craque Coutinho.




O texto é simplesmente genial.

Boa leitura!

POR NELSON RODRIGUES*

Amigos, o jogo Santos x Vasco, que deu o título ao Santos, comporta vários personagens da semana. Antes de mais nada, teríamos a diretoria do clube da Cruz de Malta. E que fez ela, a diretoria do Vasco da Gama, para que assim eu a destaque, em alto relevo? Fez apenas isto: atirou às feras um time de reservas, remeteu o time de reservas para o matadouro do Pacaembu. Qualquer paralelepípedo previra o que, fatalmente, aconteceu. O Santos deu um passeio, um baile, um banho de futebol.

Imagino que, a essas horas, nas prateleiras de São Januário, as taças, os troféus inumeráveis hão de estar chocalhando de humilhação. Vamos e venhamos: a Cruz de Malta não merecia tão horroroso vexame. E o velho almirante, o próprio do Caminho das Índias, se vivo fosse, estaria sentado num meio-fio, a chorar lágrimas de esguicho. Glória, pois, ao imortal Barbosa. Debaixo dos três paus, ele foi algo como uma rocha oceânica, como uma bastilha invicta. Amigos, sua velhice não é velhice, mas uma soberba, uma salubérrima eternidade. E o falso velhinho impediu que a goleada fosse mais abundante, mais torrencial.

Mas eu não farei da diretoria cruz-maltina o meu personagem da semana. Não. Repito: o meu personagem da semana há de ser um santista. E penso no ataque. Sim, amigos: o Santos não é como os outros. Qualquer time é um conjunto, que inclui o goleiro, a zaga, os médios e os cinco dianteiros. No Santos, não. No Santos tudo é ataque e só ataque. A defesa pode falhar, o goleiro pode papar frangos homéricos, frangos camonianos. Mas desde que o ataque esteja em estado de graça, de plenitude, não há o que temer.

A gente não sabe como se chama o quíper, a gente não se lembra como se chama o zagueiro. O que ninguém esquece é a linha, com suas penetrações fulgurantes, suas tramas geniais. Basta dizer o seguinte: o Santos tem um Pelé. Eu sei que Pelé, contra os ingleses, jogou pedrinhas. Mas é Pelé mesmo jogando mal, e vou mais além: Pelé, mesmo em casa, mesmo lendo gibi, já infunde um pânico religioso. E, além do Pelé, o ataque do Santos tem o Coutinho.

Lembro-me que ao ouvir falar em Coutinho, pela primeira vez, tomei um susto. Comentei, então, de mim para mim: “Coutinho não é nome de jogador de futebol!” De fato, o nome influi muito para o êxito ou para o infortúnio. Napoleão, se tivesse outro nome, já seria muito menos napoleônico. Outro exemplo: por que é que Domingos da Guia foi o que foi? Porque esse “da Guia” dava-lhe um halo de fidalgo espanhol, italiano, sei lá. Ainda hoje, o sujeito treme quando ouve falar em “da Guia”.

“Coutinho não é nome de jogador de futebol! O sujeito que se chama apenas Coutinho dá logo a ideia de pai de família, de Aldeia Campista, Vila Isabel, Engenho Novo, com oito filhos nas costas e a simpatia pungente de um barnabé. Pois bem. Apesar de chamar-se liricamente Coutinho, o meu personagem da semana é um monstro, um Drácula, um Vampiro da Noite de futebol. Guardem esse nome de pai de família e de barnabé: Coutinho. Ou muito me engano ou estará ele no escrete brasileiro que, se Deus quiser, vai ser bicampeão no Mundial do Chile”

 

Mas o Coutinho tem contra si o nome. O sujeito que se chama apenas Coutinho dá logo a ideia de pai de família, de Aldeia Campista, Vila Isabel, Engenho Novo, com oito filhos nas costas e a simpatia pungente de um barnabé. Pois bem. Apesar de chamar-se liricamente Coutinho, o meu personagem da semana é um monstro, um Drácula, um “Vampiro da Noite” de futebol.

Não sei se me entendem a imagem. Mas o Coutinho não sugere outra coisa, senão o sujeito que come a bola de uma maneira, por assim dizer, material, física. Ao sair de campo, parece-lhe escorrer dos lábios o sangue, ainda vivo, ainda efervescente da bola recém-vampirizada.

As inteligências simples, bovinas e, atrevo-me mesmo a dizê-lo, vacuns, hão de rosnar: “Literatura!” Parece, amigos, parece! Mas o povo, com o seu instinto agudo, sua vidência terrível, reconhece e aponta os jogadores que “comem” a bola, como se a estraçalhassem nos dentes, fazendo esguichar o sangue da redonda. E se, na verdade, existem os “tarados” da pelota, Pelé ou Coutinho há de ser um deles. Com o doce e inofensivo nome de Coutinho, o meu personagem fez, ontem, contra o Vasco, barbaridades sem conta.

A um confrade que veio, de avião, do Pacaembu, eu perguntei: “Que tal o Coutinho?” O colega baixa a voz: “Bárbaro!” Insisti: “E o Pelé?” Resposta: “Bárbaro!” Fui adiante: “E Dorval? Pepe?” A tudo, o sujeito respondia, de olho rútilo: “Bárbaro!” Então, eu me convenci, de vez, que o ataque do Santos se constitui, realmente, de sujeitos que não respeitam e, pelo contrário, brutalizam a bola, e cravam, nela, os seus caninos de vampiro. Só o Coutinho fez, contra a velhice genial e quase imbatível de Barbosa, dois gols. Dizem que, nas bolas altas, ele se tornava elástico, acrobático, alado. O seu salto realmente era um voo.

Guardem esse nome de pai de família e de barnabé: Coutinho. Ou muito me engano ou estará ele no escrete brasileiro que, se Deus quiser, vai ser bicampeão no Mundial do Chile.

Santos 3 x 0 Vasco, 17/5/1959, no Pacaembu, pelo Torneio Rio-São Paulo, Santos campeão. Na época desta crônica, Coutinho tinha — acredite ou não — dezesseis anos incompletos e despontava como o mais perfeito parceiro de Pelé. Foi à Copa do Chile como reserva de Vavá.

[*Manchete Esportiva, 23/5/1959] Crônica reproduzida do livro A Pátria em Chuteiras, Companhia das Letras. 

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