Falta de testes e desinformação governamental impedem o país de ter uma real dimensão do tamanho da pandemia neste início de 2022
Por José Eustáquio Diniz Alves, compartilhado de Projeto Colabora
No Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, crianças, jovens e adultos fazem teste para detectar a presença do vírus (Foto Fabio Teixeira/Anadolu Agency)
Para quem, genuinamente, esperava que o final de 2021 fosse também o começo do fim da pandemia, a nova onda pandêmica de janeiro de 2022 tem sido um duro golpe na esperança de vencer o SARS-CoV-2 e nos sonhos de retorno à normalidade. O número de infectados em 24 horas, no mundo, bateu recordes inimagináveis com os registros superando 4 milhões de casos, no dia 19/01, e com a média móvel de 7 dias ultrapassando a marca de 3 milhões de casos diários. Todas as marcas anteriores foram igualmente superadas no Brasil, com o registro de mais de 200 mil casos no dia 19/01 e uma média móvel de mais de 130 mil casos diários no dia 22/01. O número de óbitos também aumentou no Brasil e no mundo, mas em menor proporção.
O panorama nacional e global dos casos da covid-19
O primeiro registro da covid-19 no Brasil ocorreu no dia 26 de fevereiro de 2020, após um teste positivo de uma pessoa do sexo masculino, de 61 anos, de São Paulo, que havia retornado da Itália. Neste mesmo dia o mundo já havia registrado mais de 80 mil infecções pelo novo coronavírus. O primeiro surto de covid-19 no Brasil começou com uma certa defasagem temporal, mas, a partir do final de abril de 2020, a média móvel brasileira ultrapassou a média global e permaneceu assim por cerca de um ano e meio, conforme mostra o gráfico abaixo.
O Brasil manteve o seu coeficiente de incidência (casos por milhão de habitantes) acima do coeficiente global de maio de 2020 a outubro de 2021. Entre novembro de 2021 e meados de janeiro de 2022 o Brasil conseguiu manter média nacional de casos abaixo da média global. No dia 17/01, a média de casos brasileira estava em 351 casos por milhão e a média mundial estava em 366 casos por milhão de habitantes. Todavia, as duas curvas epidemiológicas se inverteram no dia 18/01 e chegaram, respectivamente, a 556 e 411 casos por milhão, no dia 21 de janeiro.
Neste surto pandêmico do ano novo provocado pela variante Ômicron, muitos países estão batendo, repetidamente, tristes recordes de volume de casos da covid-19. Israel e Dinamarca, que tiveram certo sucesso em controlar as ondas anteriores, chegaram, respectivamente, a impressionantes médias de 7 mil e 6 mil casos diários por milhão. Mesmo Uruguai e Austrália, que pareciam protegidos de uma transmissão comunitária descontrolada do vírus, enfrentam uma situação difícil agora, com média móvel acima de 3 mil casos por milhão de habitantes no dia 21/01, números bem acima da média brasileira.
A dinâmica internacional da pandemia, inclusive os exemplos da América do Sul, indicam que o Brasil ainda está distante de atingir o pico desta 4ª onda. A taxa de transmissão da covid-19 no Brasil está em 1,6, segundo dados da plataforma de monitoramento Info Tracker, criada pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e a Universidade de São Paulo (USP). Isto significa que cada 100 pessoas contaminadas transmitem a doença para outros 160 indivíduos.
Por isto, as projeções do Instituto de Métricas de Saúde e Avaliação (IHME), da Universidade de Washington, indicam que o Brasil pode ultrapassar a marca de 1 milhão de infecções diárias. Talvez esta alta contaminação não apareça plenamente nas estatísticas oficiais pois o país não tem testes suficientes para a alta demanda e o Ministério da Saúde ainda está com problemas para atualizar as informações. Por exemplo, o estado de São Paulo tem registrado atualmente menos casos do que o município de São Paulo. Além do mais, muitas pessoas que apresentam sintomas leves da variante Ômicron, especialmente aquelas plenamente vacinadas, nem procuram o sistema de saúde e não são incluídas no sistema estatístico da covid-19.
O panorama nacional e global dos óbitos da covid-19
A primeira morte provocada pela covid-19 no Brasil, um senhor de 62 anos, ocorreu no dia 17 de março de 2020, em São Paulo. No dia 18 de abril, em termos acumulados, o Brasil registrou 2,4 mil óbitos e o mundo, 166,4 mil óbitos. Neste dia a média móvel de 7 dias estava em 0,9 óbitos por milhão de habitantes. Mas, a partir de 19/04, a média móvel de vidas perdidas do Brasil deu um salto e chegou a cerca de 5 óbitos por milhão em meados de 2020 e ultrapassou 14 óbitos por milhão em abril de 2021, enquanto a média mundial ficou sempre abaixo de 2 óbitos por milhão de habitantes, conforme mostra o gráfico abaixo.
A novidade ocorreu entre dezembro de 2021 e 18 de janeiro de 2021, quando a média de falecimentos pela covid-19 no Brasil ficou abaixo da média mundial. Porém, a partir do dia 19/01, o Brasil voltou a apresentar maiores coeficientes de mortalidade. No dia 21/01, o Brasil apresentou 1,2 óbitos por milhão e o mundo, 1 óbito por milhão de habitantes. Na virada do ano, o Brasil tinha uma média de menos de 100 óbitos diários e passou para mais de 250 óbitos diários no fim da 3ª semana epidemiológica do corrente ano, enquanto o mundo passou de 6 mil óbitos para 8 mil óbitos diários no mesmo período.
O fato é que os surtos de SARS-CoV-2 vieram para ficar e, em breve, teremos a transição para a endemicidade. Todavia, para minimizar o volume de óbitos será preciso maximizar a capacidade mundial de gerenciar os surtos. Atualmente, o volume de vidas perdidas é cerca de 50% menor do que o ocorrido há um ano, embora o montante ainda seja alto. É certo que nem sempre será possível prever o caminho do vírus, mas a sociedade deve estar preparada para se adaptar a ele, buscando controlar os efeitos negativos da morbimortalidade covídica.
A mortalidade acumulada da covid-19 e o excesso de óbitos
Os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam que o mundo já acumulou mais de 5,5 milhões de vidas perdidas para o novo coronavírus, desde o início da pandemia. Mas os demógrafos e epidemiologistas consideram que existe uma subestimação significativa do número verdadeiro do acúmulo de óbitos. Descobrir a real dimensão da pandemia é um desafio de pesquisa complexo.
O artigo de David Adam, “The pandemic’s true death toll: millions more than official counts”, publicado na revista Nature (18/01/2022) apresenta dois modelos que tentam estimar não só o número registrado dos casos da covid-19, mas também o excesso de mortalidade. Não é uma tarefa simples, pois mais de 100 países não coletam estatísticas confiáveis sobre mortes esperadas ou reais, ou não as divulgam em tempo hábil. Há esforços para diminuir as incertezas, tanto de acadêmicos quanto de jornalistas que usam métodos que variam de imagens de satélite de cemitérios a pesquisas porta a porta e modelos de computador de aprendizado de máquina que tentam extrapolar estimativas globais a partir dos dados disponíveis.
O gráfico abaixo apresenta os dados globais confirmados de óbitos da covid-19 (5,5 milhões) até meados de janeiro de 2022 e o resultado de dois modelos: 1) da revista The Economist e 2) do Instituto de Métricas de Saúde e Avaliação (IHME), da Universidade de Washington. A primeira estimativa varia entre 12 e 22 milhões de mortes em excesso, com o número mais provável em torno de 19,45 milhões de óbitos. A segunda estimativa varia de 9 a 18 milhões de mortes em excesso, com o valor mais provável de 13 milhões de óbitos.
As discrepâncias são enormes. Mas os estudiosos consideram que as estimativas vão melhorar na medida em que mais dados estejam disponíveis. A luta para calcular o número global de mortos, enquanto a pandemia se desenrola, é um exercício que combina modelagem estatística sofisticada com boa coleta de dados. Por enquanto, as estimativas são provisórias e imprecisas, mas buscam corrigir números oficiais claramente subestimados, como as pouco menos de 5.000 mortes por covid-19 registradas na China, o que representa apenas 3 óbitos por milhão de habitantes.
Considerando os óbitos registrados no mundo e nos 10 países mais populosos, o gráfico abaixo mostra que o montante global de vidas perdidas chegou a 5,59 milhões de óbitos no dia 21 de janeiro de 2022. Os 10 países apresentam os seguintes valores: EUA com 864,6 mil óbitos, Brasil 622,9 mil, Índia 488,9 mil, Rússia 318,2 mil, Indonésia 144,2 mil, Paquistão 29,1 mil, Bangladesh 28,2 mil, China 4,6 mil e Nigéria com 3,1 mil óbitos.
Mas considerando o excesso de mortes, o gráfico abaixo, com base nas estimativas da revista The Economist, mostra números bem superiores e uma diferente ordem no ranking dos países. O excesso global de mortes foi estimado em 19,45 milhões de óbitos, sendo que a Índia aparece como o país mais atingido pela pandemia com 5,14 milhões de óbitos. Os EUA viriam em segundo lugar com 1,2 milhão de óbitos. A Rússia ficaria em terceiro lugar com 1,11 milhão de óbitos. Indonésia com 816,8 mil, Paquistão com 796,2 mil e China com 775,1 mil óbitos, os 3 aparecendo na frente do Brasil com 725,4 mil óbitos. Em seguida aparecem México com 672,1 mil, Bangladesh com 614,7 mil e Nigéria com 238,8 mil óbitos.
É claro que estes modelos estatísticos não devem ser interpretados no pé da letra, mas sim como uma estimativa de um leque de possibilidades que vão além das limitações dos números oficiais. Somente com o aperfeiçoamento dos dados, com maior testagem, melhor monitoramento dos casos e bons registros de óbitos se pode ter uma ótima avaliação do real impacto da covid-19. Conhecer a dimensão da doença é um passo necessário para vencê-la e uma condição para retomar a tendência histórica de aumento da expectativa de vida no Brasil e no mundo.
Frase do dia 23 de janeiro de 2022
“Não quero pensar que minha vida está acabando. Eu quero é mais um dia. E viver esse dia.”
Elza Soares (1930 – 2022)