Por PH de Noronha, compartilhado de Projeto Colabora –
Falta de testes, subnotificação dos casos da doença e abandono da saúde pública são as principais causas dessa desigualdade
A covid-19 mata, proporcionalmente, o dobro de pacientes nos bairros mais pobres do Rio de Janeiro, em relação às zonas mais nobres da cidade. Não é preciso ser especialista em epidemiologia para constatar essa situação social relacionada à maior epidemia que o país já viveu. Basta saber alguns conceitos básicos e aplicar uma regra de três simples (matemática) nos dados divulgados diariamente pela Prefeitura do Rio de Janeiro no Painel Rio Covid-19. A página do Painel fica hospedada no site do Data Rio (www.data.rio/app/painel-rio-covid-19), de responsabilidade do Instituto Pereira Passos, órgão municipal de pesquisas, dados e informações sobre a cidade.
Chega-se facilmente à conclusão de que os moradores dos bairros de mais baixa renda do Rio morrem mais de covid-19 ao se calcular a Taxa de Letalidade dos bairros com maior incidência. A taxa consiste na proporção de óbitos em relação ao total de infectados – e é diferente da Taxa de Mortalidade, que faz a proporção das vítimas fatais em relação ao total da população da cidade, estado, país ou região analisada.
Assim, em um exemplo hipotético, se um bairro tem 3 mil infectados com covid-19, 450 mortos pela doença e uma população de 100 mil habitantes, a Taxa de Letalidade é de 15% (proporção de 450 sobre 3.000) e a Taxa de Mortalidade é de 0,45% (450 sobre 100.000). Seria uma questão fácil de Enem, qualquer estudante saberia resolver.
A Taxa de Letalidade só mais recentemente vem ganhando destaque no noticiário. Em 1º de setembro, a Fiocruz chamou a atenção para o fato de que o Município do Rio de Janeiro possui uma letalidade de 10,7%, muito maior do que as médias nacional e mundial (ambas entre 3% e 4%). Em outras palavras, de cada 9 cariocas infectados com covid-19, em média um deles vai morrer.
De acordo com o geógrafo e sanitarista Christovam Barcellos, vice-diretor do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), a Taxa de Letalidade do município do Rio de Janeiro está muito acima do aceitável e, do ponto de vista da análise epidemiológica, representa uma sinalização de alguns prováveis problemas graves. Um deles pode ser a alta subnotificação de casos. Ou seja, o total de infectados por Covid-19 na cidade pode ser bem maior do que mostram as estatísticas da Secretaria Municipal de Saúde. Isso geraria uma Taxa de Letalidade mais alta do que deveria ser (esta também é uma questão matemática, quanto mais infectados em relação aos óbitos, menor será a letalidade).
Há várias razões para que isso ocorra. Desde pessoas contaminadas que desistiram de serem atendidas num posto de saúde por causa das filas e longa espera, e assim não entraram nas estatísticas e foram se automedicar em casa mesmo; até a falta de testes de covid-19. O Município do Rio até hoje não possui em sua política de combate à doença uma iniciativa de testagem em massa, como parte do controle epidemiológico. Cidades que adotaram a testagem em massa, como New York, tiveram rapidamente um aumento grande no número de infectados. A testagem faz a estatística ficar mais perto da realidade.
Christovam Barcellos conta que a letalidade alta pode ser também um indicativo da precariedade do atendimento básico de saúde no município. Como estamos falando do Rio de Janeiro, vale lembrar a política do prefeito Marcello Crivella (Republicanos) para a saúde municipal. Em seus oito anos de mandato, o antecessor de Crivella na prefeitura, Eduardo Paes (DEM), ampliou o atendimento básico recorrendo à terceirização dos serviços de saúde, entregando a gestão de grande parte das UPAs, Clínicas da Família, Postos de Saúde e até hospitais para as OSs, organizações sociais sem fins lucrativos que substituem o Estado na administração das unidades de saúde. Isso incluiu a contratação de médicos, enfermeiros e demais profissionais diretamente, sem concurso público e com salários maiores do que os do funcionalismo. E também a responsabilidade de compra de todos os equipamentos e insumos necessários, de remédios a papeis higiênicos.
De um modo geral, o serviço municipal de saúde melhorou no governo Paes, mas o governo Crivella cancelou os contratos de algumas OSs, cortou o orçamento e reduziu significativamente a capacidade de atendimento da saúde municipal. O vereador Reimont (PT), que acompanha criticamente a gestão Crivella, mostra alguns números que comprovam essa realidade:
“Comparando o orçamento executado de 2019 com o de 2016 (primeiro ano da gestão Crivella), houve uma queda de 20% nos recursos da Prefeitura destinados à atenção básica à saúde. Nada menos que um corte de R$ 347 milhões (já considerando a inflação do período). Comparando o orçamento previsto para 2020 com o de 2016, a redução de recursos para a atenção básica é ainda maior: 31,8%, ou R$ 419 milhões a menos. Agora, pouco antes da epidemia, em fevereiro, Crivella extinguiu 184 equipes de saúde da família, o que significa um corte de quase 5 mil profissionais. O sindicato dos trabalhadores da saúde aponta uma redução total de 235 equipes de saúde da família desde o início do governo Crivella.”
Reimont lembra que a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) determina que cada agente comunitário de saúde deve acompanhar no máximo 750 pessoas: “Hoje em dia, a média no Rio gira em torno de 2 mil pessoas para cada agente. Isso é um corte imenso. E quando você fala num corte desse nível em saúde pública, você está falando em redução dos direitos da população a um serviço oferecido pelo Estado”, acrescenta o vereador.
Crivella é acusado também de politizar e corromper a saúde municipal carioca. A Procuradoria Regional Eleitoral no Rio de Janeiro vem tentando tornar Crivella inelegível com base (entre outros crimes) em denúncia do Ministério Público, aceita pela Justiça do Rio em 2018, de improbidade administrativa no famoso caso “Fala com a Márcia”. Crivella teria colocado fieis da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) no comando de algumas funções chave na área da saúde e prometido que fieis da IURD poderiam furar a fila de espera para operações de catarata. A Universal foi criada e é dirigida pelo bispo Edir Macedo, tio de Crivella e também eminência parda no partido Republicanos, sigla que elegeu o atual prefeito.
Christovam, da Fiocruz, acha que tanto a subnotificação, quanto a precarização do serviço municipal de saúde, podem ter atuado de forma conjunta, somando forças para que a cidade maravilhosa tivesse uma taxa de letalidade tão alta. Fato é que o Rio, além de ostentar uma letalidade bem acima de níveis aceitáveis, apresenta uma situação ainda mais inquietante quando são analisados os números das estatísticas de seus bairros: naqueles que moram a população de baixa renda, morrem proporcionalmente mais infectados pela covid-19 do que nos bairros de maior poder aquisitivo.
A comparação de alguns números exemplifica bem essa situação. Os dados usados para calcular a Taxa de Letalidade são do Painel Rio Covid-19, do dia 7 de setembro, uma data mais que simbólica para os brasileiros.
- A Taxa de Letalidade em Bangu (vice-líder no ranking dos bairros com mais óbitos) era de 18% em 7 de setembro. Em Copacabana, que por muito tempo liderou o ranking dos bairros com mais infectados, a Letalidade era a metade de Bangu, 8,9%.
- Campo Grande, que lidera o ranking de óbitos (526 vítimas fatais até 7 de setembro), tinha uma Letalidade de 14,7%, quase o triplo da taxa da Barra da Tijuca, que estava em 5,3%. A Barra muito recentemente retomou a liderança dos bairros com mais casos de covid-19 – 3.822 infectados em 16 de setembro, contra 3.769 em Copacabana e 3.766 em Campo Grande.
- A Taxa em Realengo era mais que o dobro da registrada na Tijuca: 17,2% contra 8%. O mesmo ocorre na comparação entre Santa Cruz (13,2%) e Leblon (5%).
- Tomando como base os 30 bairros com maior incidência de covid-19, a Taxa de Letalidade média entre os de baixa renda é de 14%, enquanto entre os mais abastados fica exatamente em 7% – a metade.
Para balizar a qualificação de bairros “pobres” ou de “baixa renda”, foi utilizado o Índice de Desenvolvimento Social (IDS) por bairro, calculado pelo Instituto Pereira Passos, que é um indicador parecido com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) das Nações Unidas. Assim como o IDH, o IDS disponível foi calculado com base no censo de 2010 e é o dado mais recente do gênero (sequer sabemos se teremos Censo em 2020…). Mas todo carioca que acompanha o desenvolvimento da cidade sabe que nos últimos dez anos não houve desenvolvimento excepcional em nenhum bairro das Zonas Oeste e Norte. Assim, o IDS ainda é um indicador confiável.
No gráfico em anexo, que apresenta os 30 bairros com mais casos de Covid-19 em 7 de setembro, percebe-se facilmente uma tendência: quanto menor o IDS, maior a Letalidade da Covid-19. E vice-versa.
As favelas
O Instituto Pereira Passos tem 1.104 favelas com indicadores do IDS. Mas no listão de bairros do Painel Rio Covid-19 aparecem apenas sete comunidades faveladas, todas com alta Taxa de Letalidade em 7 de setembro: Maré (15,5%) Rocinha (12,9%), Cidade de Deus (18,8%), Mangueira (11,1%), Vidigal (11,7%), Complexo do Alemão (20%) e Vila Kennedy (40%). Onde estão os infectados das demais favelas? Muito provavelmente, nos registros oficiais da rede pública de saúde eles foram lançados nas estatísticas dos bairros. Os moradores de Tabajaras e Pavão/Pavãozinho, por exemplo, devem estar na conta de Copacabana; os do Borel e Turano nos números da Tijuca; os da Serrinha, no bairro de Madureira. E por aí vai.
Pelos números do Painel Rio Covid-19, o Complexo do Alemão tinha apenas 20 casos confirmados e 4 óbitos. Bem pouco, pois as mais de 15 favelas do Complexo tinham, no Censo de 2010, quase 70 mil habitantes. Muito provavelmente as vítimas da covid-19 no Alemão foram registradas como moradores de Olaria, Penha e outros bairros do entorno do Complexo. No Painel Unificador COVID-19 Nas Favelas do Rio de Janeiro, iniciativa independente montado pelo grupo Comunidades Catalisadoras, o Complexo do Alemão computa 507 casos e 49 óbitos – uma diferença brutal em relação aos dados oficiais da prefeitura. Outro exemplo: no painel da Prefeitura, Vila Kennedy contabilizava apenas 5 casos e 2 óbitos. Já no Painel Unificador independente, a comunidade aparece com 246 casos e 50 óbitos.
Outros indicadores não-oficiais – a maioria montados por organizações das comunidades – apresentam dados igualmente distintos. A forma de obtenção das informações sobre infectados e mortos explica essa diferença. A Prefeitura se baseia nos dados dos hospitais e outras unidades públicas de saúde. Já o Painel Unificador aceita até a autodeclaração do paciente de que está ou esteve com covid. Em algumas comunidades, voluntários de organizações comunitárias chegaram a ir de casa em casa para verificar quem estava doente (coisa que a Prefeitura jamais fez).
Assim, com os dados disponíveis fica difícil comparar a situação das favelas com a dos bairros. Na segunda-feira (14/9) uma iniciativa independente conduzida numa parceria da ONG Voz da Comunidade com a Cruz Vermelha e a Dados do Bem iniciou a realização de testes de covid-19 com a meta de chegar a 5 mil testados nas comunidades do Complexo do Alemão. Os resultados do primeiro dia de testes foram para as páginas do jornais: 16% estavam com covid-19 e 30% já haviam tido a doença. Os organizadores dos testes ficaram surpresos e os números altos ganharam as páginas do jornais – afinal, era um indicador de que quase metade da comunidade do Alemão pode ter sido infectada. Naquele dia apenas 63 pessoas foram testadas, uma amostra ainda muito pequena, mas em outros lugares onde esses parceiros fizeram testes desde abril (Duque de Caxias e Bangu) a testagem no primeiro dia deu números bem menores.
Somente quando o município do Rio adotar uma política de testagem em massa saberemos o tamanho real da subnotificação nos dados oficiais e independentes. Porém, a precarização do atendimento básico à saúde pela Prefeitura do Rio é mais fácil de ser comprovada e pode explicar boa parte das altas Taxas de Letalidade vistas nos bairros de baixa renda. Ou seja, possivelmente muitos cariocas morreram de Covid-19 por falta de atendimento adequado nos bairros mais pobres da cidade. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito na nova legislatura de vereadores que serão eleitos em novembro para o mandato 2021-2024 talvez possa futuramente esclarecer a questão – e encontrar eventuais culpados.