Compartilhado de BBC –
“Nunca vi uma situação tão assustadora. Não posso acreditar que estamos na capital da Índia”, diz Jayant Malhotra à BBC. “As pessoas não estão recebendo oxigênio e estão morrendo como animais.”
Malhotra tem ajudado em um crematório na capital da Índia, Delhi, onde hospitais estão sofrendo com uma onda sem precedentes de infecções por coronavírus.
O país registrou um recorde global de novos casos pelo quinto dia consecutivo. Foram 320 mil novos casos de infecção nesta terça (27) e o número de mortos se aproxima de 200 mil.
Enquanto a Índia sofre com esse surto – semelhante ao que o Brasil passou e ainda passa -, China, Estados Unidos, grande parte da Europa Ocidental e partes da África e sudeste da Ásia registraram mortes em declínio nas duas semanas anteriores a 25 de abril.
Alguns países estão suspendendo as restrições de circulação – a União Europeia até sugeriu autorizar que os americanos vacinados possam viajar para a Europa neste verão.
Mas será que a piora da situação na Índia pode se tornar um grande problema para todo o mundo?
Qual é o tamanho da crise da covid da Índia?
Em fevereiro, com mortes por dia na casa das centenas e casos em torno de 12 mil, muitos na Índia estavam esperançosos de que o país havia escapado do pior da pandemia.
Mas o país tem relatado mais de 200 mil novos casos de covid-19 diariamente desde 17 de abril – muito além do pico anterior de 93 mil casos por dia em setembro do ano passado.
As mortes também têm aumentado – uma média de 2.336 pessoas morreram na Índia por dia na semana até 25 de abril – o dobro do número durante o pico da primeira onda. No Brasil, com uma população menor que a da Índia, a média diária da mesma semana foi 2.465, segundo dados do Conass (Conselho Nacional de Secretários da Saúde).
Para o repórter especialista em ciência e saúde da BBC James Gallagher, a Índia está “batalhando”. “O medo palpável me lembra do início da pandemia, quando o coronavírus ainda era uma entidade desconhecida. A covid pode ser letal mesmo com cuidados médicos perfeitos, mas quando os hospitais ficam sobrecarregados, as vidas que poderiam ter sido salvas são perdidas.”
A situação é particularmente terrível em Delhi, onde não há mais leitos de UTI.
Muitos hospitais estão recusando novos pacientes e pelo menos dois viram pacientes morrerem depois que o suprimento de oxigênio acabou.
Parentes de pessoas doentes estão apelando nas redes sociais por vagas em hospitais, suprimentos de oxigênio e máquinas de ventilação mecânica.
Para complicar a resposta ao surto, os laboratórios também estão sobrecarregados e estão demorando até três dias para devolver os resultados dos testes de covid.
Os crematórios, por sua vez, estão funcionando 24 horas por dia.
Cenas semelhantes estão ocorrendo em outras grandes cidades. No total, a Índia confirmou quase 17 milhões de infecções e 192 mil mortes.
Mas é altamente provável que esses números subestimem as infecções e mortes.
A enorme população do país e seus problemas logísticos tornam muito difícil fazer o teste de covid ou registrar com precisão as mortes, tornando muito mais desafiador saber a escala exata da crise na Índia do que na Europa ou nos EUA, por exemplo.
O quão ruim pode ficar?
“Infelizmente, nas próximas semanas a situação vai piorar significativamente”, adverte Gallagher.
“Uma lição, aprendida uma e outra vez, é que um aumento nos casos leva a um aumento nas mortes algumas semanas depois”, diz ele.
“Mesmo se a Índia pudesse impedir a propagação do vírus, as mortes continuariam a aumentar exponencialmente, pois muitas pessoas já foram infectadas. Claro, não há sinal de que as infecções estão se estabilizando – até onde os casos continuarão a subir dependerá do sucesso dos lockdowns e do ritmo da imunização.”
É importante registrar que a Índia ainda não tem o maior número de casos nem mortes – os EUA tiveram até agora 32 milhões de casos e 572 mil mortes, de acordo com dados compilados pelo Centro de Recursos Coronavírus Johns Hopkins na segunda-feira (26 de abril). O Brasil registra mais de 14 milhões de casos e 391 mil mortes.
A Índia tampouco está no topo da lista de casos ou mortes por milhão de habitantes – grande parte da Europa e da América Latina está relatando números muito maiores.
Mas é o tamanho da população na Índia e o aumento dramático de casos e mortes que estão causando tanta preocupação.
“Nunca vimos uma situação como esta, em que o sistema de saúde não seja capaz de lidar com o peso dos números atuais e haja, no fundo, um aumento acentuado e contínuo de novos casos”, Gautam Menon, professor de física e biologia e especialista na modelagem de doenças infecciosas, disse à BBC.
Quando os serviços de saúde entram em colapso, as pessoas morrem por todas as causas em um número muito maior – mortes que não se refletem nas estatísticas do coronavírus.
Além disso, as operadoras de saúde na Índia também têm desafios muito maiores para cobrir sua vasta população e muitos indianos não têm acesso a nenhum serviço de saúde.
O que isso significa para o resto do mundo?
A pandemia é uma ameaça global.
Desde os primeiros dias, cientistas e especialistas em saúde rastrearam a infecção por coronavírus movendo-se de um país para outro, impulsionada por viagens aéreas e uma economia mundial altamente globalizada.
As fronteiras nacionais têm representado até agora uma barreira muito limitada à propagação, e é impraticável – senão impossível – impor proibições de viagens e fechar fronteiras indefinidamente.
Portanto, o que acontece na Índia certamente terá repercussões por outros países, especialmente porque o país tem a maior diáspora do mundo. Além disso, o descontrole de infecções pode levar ao surgimento de variantes que, potencialmente, podem resistir a vacinas.
“A pandemia nos ensinou que o problema de um país é problema de todos”, acrescenta James Gallagher.
“O coronavírus foi detectado pela primeira vez em uma cidade na China, agora está em todos os lugares. O número recorde de casos na Índia pode se espalhar para outros países, razão pela qual muitos introduziram restrições de viagem, e altos níveis de infecção são um terreno fértil para novas variantes do vírus.”
Uma nova ameaça nasceu na Índia?
E as condições na Índia podem ser uma notícia muito ruim para a luta global contra a covid-19.
“A alta população e densidade da Índia é uma incubadora perfeita para este vírus experimentar mutações”, diz Ravi Gupta, professor de microbiologia clínica da Universidade de Cambridge.
Se o vírus tiver tempo para sofrer mutação em tais condições ideais, isso poderá prolongar e aumentar a gravidade da pandemia em todo o mundo.
“Quanto mais oportunidades o vírus tiver de sofrer mutação, maior será a probabilidade de encontrar uma maneira de infectar até mesmo as pessoas que foram vacinadas”, acrescenta James Gallagher.
Novas variantes do vírus do Reino Unido, Brasil e África do Sul já causaram problemas durante esta pandemia, se espalhando pelo mundo, e o professor Menon alerta para novas variantes na Índia.
“Sabe-se que alguns deles estão associados a regiões da proteína spike que permitem que os vírus se fixem melhor às células e reduzem a ligação de anticorpos”, disse ele.
“É impossível limitar a disseminação de variantes. A variante B.1.617 (que foi identificada pela primeira vez na Índia) já foi vista em vários países fora da Índia, provavelmente como resultado da importação.”
O professor Menon avisa que os vírus continuarão a sofrer mutações e evoluirão para escapar da imunidade que uma infecção anterior ou vacinação pode proporcionar.
A questão agora é quão rápido isso pode acontecer.
“Sabemos que o SARS-CoV-2 pode sofrer mutação para alcançar mais transmissibilidade, a partir de nossa observação das múltiplas variantes em todo o mundo. Até agora, acreditamos que as vacinas ainda devem permanecer eficazes contra essas novas variantes, mas isso pode mudar no futuro.”
Como a Índia (e o resto do mundo) pode impedir essa propagação?
Esforços internacionais estão em andamento para ajudar a Índia a administrar sua escassez crítica de oxigênio e o aumento devastador de casos da covid-19.
O Reino Unido começou a enviar ventiladores e dispositivos concentradores de oxigênio e os EUA estão suspendendo a proibição de envio de matérias-primas ao exterior, permitindo que a Índia produza mais da vacina AstraZeneca.
Vários países também estão se oferecendo para enviar equipes médicas e EPIs para ajudar.
O governo indiano aprovou planos para mais de 500 usinas de geração de oxigênio em todo o país para aumentar o abastecimento.
Mas essas são medidas para tentar prevenir mortes, não infecções. O que o mundo precisa é de um aumento dramático na capacidade da Índia de vacinar sua população e prevenir a propagação do vírus.
O país pode ter tido motivos para ter esperança no início da pandemia – quando se trata de fabricação de vacinas, o país é uma potência.
Ele administra um programa de imunização massivo, fabrica 60% das vacinas do mundo e abriga meia dúzia de grandes fabricantes.
Mas “um programa de vacinação de adultos em grande escala contra um patógeno virulento como o SARS-Cov2, o vírus que causa a covid-19, está apresentando desafios sem precedentes”, de acordo com o correspondente da BBC Índia Soutik Biswas.
A campanha de vacinação da Índia, a maior do mundo, começou em 16 de janeiro e visa cobrir 250 milhões de pessoas até julho. Até ao momento, acredita-se que “apenas” cerca de 118 milhões de pessoas receberam a primeira dose. Isso representa menos de 9% da população.
Inicialmente limitada a profissionais de saúde e pessoal da linha de frente, a vacinação foi estendida em etapas para pessoas com mais de 45 anos.
Mas a escala da tarefa de imunizar uma população tão grande e os problemas logísticos e de infraestrutura que o país apresenta estão complicando a implementação.
Especialistas dizem que a campanha de vacinação precisa acelerar muito mais para atingir sua meta.
“Não está claro se o país tem vacinas e capacidade estadual suficientes para acelerar a movimentação e expandir a cobertura para incluir os jovens”, diz Biswas.
Até que uma população tão grande seja vacinada com sucesso, as infecções no país representarão um risco para o mundo inteiro.
“O problema de doenças infecciosas como a covid-19 não é problema de uma única nação ou mesmo de um pequeno grupo de nações. É verdadeiramente global em suas implicações”, diz o professor Menon.
“Precisamos de mais cooperação internacional em testes, vacinas e pesquisas para o bem maior do mundo.”
Como as autoridades de saúde pública e os políticos têm dito desde os primeiros dias da pandemia, “ninguém está seguro até que todos estejam seguros”.