Por André Biernath, compartilhado de BBC News –
O final de setembro é marcado pelo fim do inverno e o início da primavera no Hemisfério Sul. Mas, em 2021, esse período também pode estar relacionado a outra mudança significativa, ao menos no Brasil: especialistas indicam que os próximos dias serão decisivos para entender o futuro da pandemia de covid-19 por aqui.
E isso tem a ver com uma série de fatores que ocorreram nas últimas semanas e que podem ter influência direta no número de casos, hospitalizações e mortes pela doença provocada pelo coronavírus.
Falamos aqui de aglomerações registradas em protestos, eventos e viagens, o menor impacto da variante Delta no Brasil, o avanço da vacinação e até o alívio em algumas medidas restritivas que foram mantidas por cidades e Estados nos últimos meses.
Por ora, as estatísticas trazem certa esperança: desde junho, as médias móveis de casos e óbitos por covid-19 caem constantemente. Mesmo assim, os últimos dias foram marcados por ligeiros aumentos nesses índices.
“De uma maneira geral, podemos dizer que o cenário está cada vez melhor, após aquele período de caos na saúde que vivemos entre março e maio”, destaca o epidemiologista Paulo Petry, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Mas será que os gráficos seguirão nessa trajetória de queda daqui para frente? E o que cidadãos e gestores públicos deveriam fazer agora para manter essa onda de boas notícias?
Onde estamos?
O primeiro semestre de 2021 foi marcado por uma segunda onda altíssima de infecções e óbitos por covid-19 no Brasil. Os sistemas de saúde de várias cidades entraram em colapso e não existiam vagas suficientes para suprir a demanda de novos pacientes.
No auge da crise, o país chegou a registrar médias móveis de 77 mil novos casos e 3 mil mortes pela doença todos os dias. Não à toa, o país foi classificado como o epicentro da pandemia naquele momento.
Na virada para o segundo semestre, essas curvas começaram a cair, embora tenham se mantido em patamares muito elevados durante os meses de julho e agosto.
Mais recentemente, ao longo do mês de setembro, as médias móveis estavam na casa dos 14 mil novos casos e 500 óbitos por covid-19 — números que chegam a ser seis vezes menores do que o registrado lá no pico da segunda onda.
O que explica essa queda tão grande? O pesquisador em saúde pública Leonardo Bastos, da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz), destaca o papel das vacinas.
“O que aconteceu nesse meio tempo foi a vacinação, que teve um efeito muito claro e impressionante. Vimos uma redução consistente nos casos e nos óbitos”, analisa.
A campanha de imunização contra a covid-19 começou em janeiro e fevereiro de 2021, mas os primeiros meses foram marcados pela escassez de doses, que serviram para proteger apenas a camada mais vulnerável da população, como os idosos e os profissionais da saúde.
No meio do ano, a chegada de milhões de unidades de imunizantes permitiu incluir praticamente toda a população adulta brasileira na campanha — no início de setembro, muitos prefeitos e governadores comemoraram o fato de que praticamente 100% dos cidadãos acima de 18 anos já haviam recebido ao menos a primeira dose que protege contra o coronavírus.
No momento, cerca de 70% de todos os brasileiros já tomaram a primeira dose e 40% completaram o esquema vacinal (com a segunda dose ou com a vacina da Janssen, que exige apenas uma aplicação).
E aqui pesou bastante o fato de o Brasil ser um dos locais do mundo onde há grande aceitação dos imunizantes. Em partes dos Estados Unidos e da Europa, a campanha de vacinação até começou bem, mas esbarra atualmente numa parcela da população que se recusa a tomar as doses.
Uma nova subida?
Apesar da queda sustentada nos números durante os últimos meses, algumas estatísticas mais recentes, colhidas nos últimas dias, mostram um ligeiro aumento nos casos e nas mortes por covid-19.
Na segunda quinzena de setembro, a média móvel de mortes voltou a ficar acima de 500 por dia no Brasil — no início do mês, essa taxa estava na casa dos 400.
Outra coisa que chamou a atenção foi a inclusão repentina de dados que estavam represados em alguns Estados. São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, incluíram 150 mil casos de covid-19 “atrasados” no sistema de vigilância.
Isso fez com que a média móvel de casos explodisse de um dia para outro: segundo o site do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), essa taxa estava em 14 mil no dia 17 de setembro e pulou para 34 mil em 18/9.
De acordo com informações divulgadas pelas próprias Secretarias Estaduais de Saúde, o e-SUS Notifica, a plataforma onde esses números são registrados, passou por atualizações e ajustes.
Com isso, as equipes responsáveis por realizar a notificação encontraram algumas dificuldades nos últimos dias. A expectativa é que as curvas voltem a se normalizar em breve, mas é preciso acompanhar se isso realmente acontecerá ou teremos efetivamente um novo aumento entre o finalzinho de setembro e o início de outubro.
7 de setembro
Ainda entre as possíveis ameaças com potencial de quebrar essa sequência de boas notícias, os especialistas chamam a atenção para o que ocorreu no feriado do dia 7 de setembro.
“Nesta data, tivemos manifestações em várias cidades do país e muitas pessoas também aproveitaram para viajar”, destaca o virologista José Eduardo Levi, coordenador de pesquisa e desenvolvimento da Dasa.
Em locais como Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro, centenas de milhares de brasileiros se reuniram para demonstrar apoio ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Em setembro, também ocorreram manifestações contra o presidente.
“E nós vimos pelas imagens que as pessoas estavam aglomeradas e muitas não usavam máscara” complementa o cientista, que também faz pesquisas no Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (USP).
A janela entre o contato com o coronavírus e o desenvolvimento da covid-19 costuma demorar até 15 dias. Ou seja: se alguns indivíduos que estiveram aglomerados no dia 7 de setembro se infectaram e criaram novas cadeiras de transmissão a partir dali, os efeitos práticos disso só serão sentidos do dia 22/9 em diante.
“O último feriado foi a prova dos noves. Os eventos ocorreram em plena circulação da variante Delta e precisamos ver como isso repercutirá na pandemia a partir de agora”, completa Levi.
A Delta triunfou ou refugou?
Falando em variantes, um terceiro aspecto que ajuda a explicar os números recentes tem justamente a ver com a Delta, que surgiu no final de 2020 e causou (e ainda causa) um enorme estrago em várias partes do mundo, como Índia, Indonésia, Reino Unido, Israel e Estados Unidos.
As novas ondas de casos e mortes relacionadas a essa nova linhagem viral no mundo deixaram os pesquisadores brasileiros de cabelo em pé: o que impediria a Delta de provocar o mesmo problema em nosso país?
Alguns grupos de pesquisa que fazem a vigilância dos coronavírus que estão em circulação mostraram que essa variante se tornou dominante em algumas cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, a partir de agosto.
Mas, felizmente, a realidade contraria essas expectativas e não houve um aumento das internações e mortes por covid-19 no Brasil, pelo menos até agora.
“Em locais como Londres, Nova York e Israel, passaram-se cerca de dois meses entre a chegada da Delta e um grande aumento no número de casos de covid-19”, calcula Levi.
“As projeções matemáticas indicavam um cenário catastrófico para o Brasil também. Mas essa variante foi detectada aqui no começo de junho, então a explosão de casos deveria ocorrer em agosto. Já estamos no final de setembro e os números não subiram”, conclui.
Mas como explicar isso? Por que essa variante não foi um bicho de sete cabeças até agora no Brasil, como se esperava?
De acordo com os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, há algumas teorias que podem ajudar a entender esse fenômeno.
O primeiro deles é novamente o avanço da vacinação: apesar de as doses disponíveis perderem um pouco da efetividade contra a Delta, elas continuam a funcionar relativamente bem, especialmente contra as formas mais graves da covid-19, que exigem hospitalização e intubação.
O segundo motivo está relacionado àquela segunda onda de casos que acometeu o país entre março e maio.
“Tivemos muitas pessoas infectadas, então ainda há uma resposta imune natural relacionada à variante Gama, que foi responsável pelo pico registrado no primeiro semestre”, contextualiza Levi.
Juntos, esses dois ingredientes podem ter feito com que uma parcela considerável da população brasileira ainda tenha um bom nível de anticorpos, seja pela vacinação ou pela infecção natural (que, aliás, nunca é desejável, pois isso está relacionado ao aumento de mortes). E, por sua vez, essa soma de fatores poderia ter sido capaz de barrar uma nova onda de infecções pela Delta.
Vale reforçar aqui que essas são apenas suspeitas e ainda não existem evidências científicas sólidas para confirmar a ligação entre essas duas coisas.
Para onde vamos?
Num cenário positivo, mas com algumas incertezas importantes, os especialistas entendem que é preciso observar o que acontecerá nas próximas semanas antes de ter a certeza de que o pior já passou.
A epidemiologista Ethel Maciel, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), pondera que a pandemia no Brasil parece estar sempre atrasada em relação ao que ocorre em algumas partes do Hemisfério Norte.
“Até o momento, as curvas epidemiológicas da covid-19 nos Estados Unidos e na Europa se repetiram algumas semanas depois em nosso país”, lembra.
E a situação de momento nesses locais não é das melhores: com o avanço da Delta e as dificuldades em convencer parte da população a tomar as vacinas, o número de casos e mortes voltou a subir de forma considerável por lá. Em terras americanas, por exemplo, já são registrados mais de 2 mil óbitos por covid-19 todos os dias, de acordo com os últimos boletins.
Será que o mesmo cenário vai acontecer no Brasil? Ninguém sabe. “Dada nossa cobertura vacinal, a tendência é que a gente mantenha essa queda nos dados ou a situação se estabilize num certo patamar de casos e mortes”, projeta Bastos, da FioCruz.
“Agora, não temos certeza se esse patamar será ‘aceitável’ ou ainda estaremos com muitas hospitalizações e mortes por infecções respiratórias todos os dias”, completa.
Falamos aqui de probabilidades. E é preciso ter em mente outras coisas que podem aparecer pelo caminho, como o surgimento de uma nova variante ainda mais potente que a Gama ou a Delta e com capacidade de driblar completamente as vacinas.
“Uma coisa que aprendemos durante essa pandemia é o quanto o coronavírus é imprevisível, portanto não podemos cantar vitória ainda”, concorda Levi.
O efetivo controle da pandemia depende do engajamento da população, que precisa ir aos postos de saúde para tomar a primeira, a segunda ou, se for o caso, a terceira dose dos imunizantes.
“Também devemos tomar muito cuidado com as medidas não farmacológicas, como usar máscaras de qualidade e evitar aglomerações”, diz Maciel.
“Não podemos cometer o mesmo erro dos Estados Unidos, que retirou a obrigatoriedade das máscaras e precisou voltar atrás logo depois. Retomar essas políticas é sempre muito difícil”, diz a epidemiologista.
Petry entende que as reaberturas anunciadas por Estados e municípios do Brasil também precisam ser feitas aos poucos e com muito cuidado. “A flexibilização precisa ser gradual, e não aquele oba-oba que vimos na Europa”, conta.
“E os gestores precisam sempre acompanhar os números e ter pulso para agir a tempo caso percebam uma piora”, sugere o epidemiologista da UFRGS.
No reino das incertezas, será necessário aguardar as próximas semanas de setembro e outubro para entender se o futuro da pandemia no Brasil será marcado por frustração ou esperança.