Por Paulo Kliass, compartilhado de Outras Palavras –
Apoiado por Bolsonaro, novo presidente da Câmara já anuncia prioridade à PEC 32, formulada por Guedes. Caso aprovada, pode arrasar serviços públicos, precarizar servidores e dar ao governo poder de extinguir estatais, fundações e autarquias
Mal terminaram as eleições para os dirigentes das duas casas do poder legislativo e o governo já procurou alinhar com ambos os presidentes aqueles projetos que considera mais relevantes para a retomada dos trabalhos para esse ano que ainda não deu as mostras de ter começado de fato. Com isso, o novo comandante da Câmara dos Deputados resolveu atender aos aspectos negociados com Bolsonaro em troca do apoio do Palácio do Planalto à sua candidatura contra o nome articulado pelo seu antecessor, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Uma vez confirmada sua vitória ainda em primeiro turno contra Baleia Rossi (MDB-SP), Arthur Lira (PP-AL) providencia, a partir de agora, o processo das “entregas”, bem ao estilo das conhecidas negociações com o fisiologismo.
Assim, o parlamentar promete retomar um conjunto amplo de projetos de interesse do núcleo do governo, em especial na área da economia. Um deles ficou conhecido pela alcunha de “Reforma Administrativa”, apresentada sob a forma de uma Proposta de Emenda Constitucional, a PEC nº 32. O material foi protocolado no começo de setembro do ano passado, em uma semana marcada por mais um dos famosos movimentos atabalhoados da equipe do capitão. Setores do financismo e os grandes meios de comunicação pressionavam o governo a apresentar algo para mexer com a administração pública, mas havia ainda uma certa resistência nos corredores da Esplanada dos Ministérios.
Pouco menos de um mês antes do envio da PEC 32, Paulo Guedes assistiu à saída de mais dois de seus principais assessores. Um deles era Paulo Uebel, o secretário supostamente responsável pela Reforma Administrativa e que se declarava insatisfeito com os obstáculos internos ao avanço da matéria. Talvez esse movimento tenha contribuído para Bolsonaro determinar a aceleração do envio da proposição. Bombardeado pela grande imprensa de que não estaria prestigiando Paulo Guedes como deveria, o presidente acabou atropelando e assinando um documento muito mal elaborado, com erros e lacunas. Isso sem entrar no mérito do desastre que ele pode representar, caso aprovado. Mas o fato é que a proposta ficou parada na Câmara. E Lira pretende reanimar sua tramitação, enviando rapidamente para que seja apreciada pela CCJ e não por Comissão Especial constituída para esse fim.
Nem “reforma”, nem “administrativa”
O primeiro ponto a ser considerado refere-se à forma pela qual o tema vem sendo tratado. Ora, em nossa tradição de abordagem da ciência política, o substantivo “reforma” costuma ser utilizado para processos de mudança com algum conteúdo de aperfeiçoamento e melhoria. Por outro lado, nesse contexto o adjetivo feminino “administrativa” pretenderia evidenciar uma preocupação com os aspectos gerais da Administração Pública. Pois o rebento, claramente gerado às pressas, não cumpre com nenhum destes dois pressupostos de origem. Não se trata de uma reforma. E muito menos de uma abordagem coerente integrada da administração do Estado brasileiro.
Como tudo nesse governo, a PEC 32 também traz a marca da dupla Bolsonaro & Guedes. Assim, ela se limita a compor com as demais medidas apresentadas desde o início de 2019 na área da economia. A proposta contribui para dar continuidade à obsessão visceral do ex-chicago boy em aprofundar a destruição do Estado e o desmonte das políticas públicas. Afinal, essa é, com certeza, sua principal missão nesse governo. Trata-se de fazer terra arrasada de tudo aquilo que remeta a mais singela lembrança de setor público e abrir esse espaço para acumulação do capital privado. Simples e terrível assim!
A intenção do governo é ganhar a famosa “disputa da narrativa” junto à opinião com o argumento falacioso de que a Reforma Administrativa seria urgentíssima por sua capacidade de resolver no curto prazo os problemas fiscais que ao Brasil atravessa. Trata-se de mais uma grande mentira. Já nos cansamos de afirmar que as dificuldades nas contas públicas não devem ser buscadas pelo lado da redução das despesas. O quadro de profunda recessão das atividades econômicas está a exigir exatamente o oposto: medidas contracíclicas, que envolvem recuperação do protagonismo do Estado e aumento das despesas públicas. Além disso, o nível elevado do déficit nas contas governamentais ocorrido em 2020 – e que será repetido em 2021 – não será em nada atenuado com mudanças na Constituição que se pretendem realizar ao longo do ano.
A PEC 32 acaba com a estabilidade do servidor. Uma loucura! Com o discurso de que estaria eliminado “privilégios”, Guedes e Bolsonaro pretendem destruir uma das espinhas dorsais do que ainda resta de qualidade e profissionalismo nos serviços públicos prestados em nosso país. A real intenção é demitir, demitir e demitir, para fazer rima com a sua obsessão em cortar, cortar e cortar. É verdade que a permanência do instituto da estabilidade dificulta a vida de qualquer chefe de poder executivo de plantão, quase sempre cheio de maldosas tentações, a exigir que a máquina do governo federal, estadual ou municipal atenda aos seus interesses e desejos. Ninguém nega que existe uma lacuna na legislação, pois a possibilidade de demissão por insuficiência na avaliação de desempenho ainda não foi regulamentada. Mas para melhorar a qualidade dos servidores públicos não há necessidade alguma de extinguir a estabilidade.
PEC 32: bolsonarismo na Constituição
A PEC 32 fuzila o chamado Regime Jurídico Único (RJU), instituto jurídico criado pelos constituintes em 1988 com o objetivo de desenhar um modelo de serviço público republicano e de qualidade, com acesso por meio de concurso e composto por carreiras estruturadas com maior grau de profissionalização. Em vez de promover o necessário aperfeiçoamento e melhoria no mesmo, Guedes e Bolsonaro propõem simplesmente sua extinção e substituição por outros regimes para os servidores sem nenhuma dessas garantias. Na verdade, o objetivo maior é introduzir na administração pública os princípios nefastos da precariedade e da informalidade, que caracterizaram as mudanças recentes na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), sob a enganação de uma suposta Reforma Trabalhista. Um serviço público com menos funcionários, com salários reduzidos e ameaçados por demissão ao bel prazer das chefias! Esse é o sonho liberaloide de Guedes e o pesadelo da maioria da população que depende dos serviços de qualidade oferecidos pelo Estado. E Bolsonaro seguiria nadando de braçadas nesse ambiente.
A PEC 32 rompe com qualquer sentido de respeito à ordem constitucional republicana e oferece aos chefes de poder executivo a possibilidade de extinção de órgãos públicos de acordo com seu desejo pessoal. A PEC 32 é bolsonarista em sua raiz. Pouco importa que os mesmos tenham sido criados por lei. Segundo a mudança proposta, bastará um decreto para eliminar uma empresa estatal, uma autarquia, uma fundação ou qualquer outro órgão. Assim, qualquer discordância do presidente com políticas, propostas ou posicionamentos apresentados por tais instituições poderá ser resolvida por meio de uma simples canetada, com total poder de destruição. Imaginemos como seria sanha de Bolsonaro se tivesse à sua disposição tal possibilidade, com todas as suas tentativas de desmoralização pública de instituições como a FUNAI, o INPE, o IBAMA, o ICMBIO, a FIOCRUZ e tantas outras.
Esse governo não tem nenhuma intenção de aperfeiçoar a estrutura da administração máquina pública e torná-la mais eficiente. Se fosse o desejo, bastaria ter encaminhado medidas gerenciais no âmbito do próprio governo e algumas mudanças na legislação. Na verdade, o que sobressai é apenas mais uma tentativa de destruição das conquistas ainda presentes na Constituição. Um caminho para impedir que o Estado ofereça à população os direitos ali previstos e com isso alargar a via para posterior substituição pela iniciativa privada.