Rosângela Cibele foi presa em setembro de 2021 por tentar furtar dois pacotes de macarrão instantâneo, um saquinho de refresco em pó e uma garrafa de refrigerante de 600 ml em um mercado de São Paulo.
Por Camilo Vanucchi – no UOL. compartilhado de Construir Resistência
Juntos, os alimentos custavam R$ 9,69 (o equivalente, na época, a dois litros de gasolina ou três bilhetes de ônibus).
Rosângela é uma mulher negra que já atuou como técnica em enfermagem. Na ocasião, tinha 41 anos, vivia na rua, sem casa e sem emprego, e estava “limpa” havia um ano, desde que concluíra um processo de reabilitação que a permitiu superar a dependência do crack (o que a fazia sonhar em reaver a guarda da filha caçula, recolhida a um abrigo após nascer literalmente na rua, em 2019).
Além dela, Rosângela tinha outros três filhos, um adolescente e duas crianças que, por necessidade, moravam com a avó.
Quando percebeu que funcionárias do mercado haviam flagrado sua tentativa de colocar os produtos na bolsa, Rosângela os devolveu à prateleira e, tremendo da cabeça aos pés, fugiu sem levar nada.
Foi perseguida e capturada por policiais, que a conduziram à delegacia. “Eu estava com muita fome, só pensava em comer”, ela contaria, dias depois, em entrevista a um programa de TV. “Os policiais diziam que eu seria liberada logo. Eu só repetia que queria comer.”
Rosângela não foi liberada logo. Nem recebeu nada para comer até a manhã seguinte. Denunciada pelo Ministério Público de São Paulo, teve a prisão em flagrante convertida em prisão preventiva pela juíza de plantão.
“A medida é a mais adequada para garantir a ordem pública, porquanto, em liberdade, a indiciada a coloca em risco, agravando o quadro de instabilidade que há no país”, anotou a operadora do direito.
“O momento impõe maior rigor na custódia cautelar, pois a população está fragilizada no interior de suas residências, devendo ser protegida pelos poderes públicos e pelo Poder Judiciário contra aqueles que, ao invés de se recolherem, vão às ruas com a finalidade única de delinquir.”
Faminta, presumidamente em risco, Rosângela representava risco à sociedade, segundo a doutora. Imagina se todos os famintos começassem a roubar…
A Defensoria Pública impetrou um habeas corpus no dia seguinte, alegando estado de necessidade. “Num país em que as pessoas passam fome, não se pode prender uma acusada por furtar alimentos para sua alimentação”, argumentou o defensor.
O habeas corpus foi negado pelos desembargadores da 6ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo. Alegaram que Rosângela tinha um passado “desabonador”, com “dupla reincidência”, uma vez que sua ficha listava outras duas detenções: uma em 2014, por furto de 2 metros de fio elétrico, e outra em 2018, por furto de alimentos e produtos de higiene pessoal.
Quem mandou incorrer em crime duas vezes? Quem mandou a fome e a miséria persistirem, o “estado de necessidade” impeli-la pela terceira vez ao furto em sete anos, sempre sem violência, beirando a insignificância, que é quando o valor do bem roubado é tão baixo que o Judiciário entende não fazer sentido mover todo o sistema de Justiça em torno de um processo pouco relevante? Perdeu o “réu primário”. Prenda-se a moça. Cumpra-se.
Criminosa, delinquente, incorrigível e perigosa, a mulher de 41 anos, negra e faminta, presa por (tentar) roubar menos de R$ 10,00 em produtos alimentícios (dois miojos, um tang e uma coca-cola), permaneceu por duas semanas no Centro de Detenção Provisória Feminino de Franco da Rocha (SP), até ser liberada por uma decisão de terceira instância, expedida em outubro pelo Superior Tribunal de Justiça.
Recentemente, uma jovem estudante de medicina da USP foi acusada de desviar R$ 937 mil do fundo destinado a pagar a festa de formatura de sua turma.
Em depoimento à polícia, Alicia confessou o crime. Parte do dinheiro foi usado por ela para pagar o aluguel do bom apartamento em que vive.
Outra parte ela usou para alugar um automóvel, como mensalista, no qual passou a cumprir o trajeto até a faculdade, uma das mais tradicionais do Brasil, em que cursava o sexto ano.
Não sou eu que estou dizendo, foi ela mesma quem disse. Uma terceira parte, a mais expressiva, ela teria usado para contratar muitas apostas, de alto valor, numa casa lotérica, possivelmente na esperança de recuperar o valor já consumido.
Tu provavelmente chamarias de roubo a ação praticada por ela, mas, por algum motivo, quase a totalidade da imprensa tem se referido ao caso como “desvio”.
Alicia tem 25 anos e um sobrenome europeu. Ela não vive em situação de rua, não é negra, não tem um histórico de dependência química, nem quatro filhos para criar. Ao que consta, Alicia nunca passou fome.
Tecnicamente, a jovem estudante é investigada pelos crimes de apropriação indébita, lavagem de dinheiro e estelionato. A pena por apropriação indébita pode chegar a quatro anos de reclusão. Alicia não foi presa.
Também recentemente, um rombo de R$ 40 bilhões obrigou as Lojas Americanas a pedir recuperação judicial.
Fornecedores deixaram de receber. O calote pode ter sido fatal para parte deles. Até agora, ninguém parece ter culpa no cartório. Nem os executivos, nem os acionistas.
Todos eles continuam sendo chamados respeitosamente de executivos e acionistas pela imprensa. Passa-se o pano.
Crime perfeito não é o que não deixa suspeitos, mas o que não tem culpados, apenas vítimas.
Fraudes contábeis e desvios praticados por pessoas brancas de certa casta social costumam gozar do beneplácito da sociedade, de jornalistas e influenciadores.
Ninguém é chamado de bandido; raríssimos são deixados por duas semanas em prisão cautelar; poucos perdem o “réu primário”.
Que eles nunca tentem fazer nada errado com um pacote de miojo.
Camilo Vanucchi é jornalista, escritor e professor