Crimes de maio de 2006: falta alguém em Nuremberg

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Por Luis Nassif, Jornal GGN – 

Saulo, na ALESP: provocando o público e os deputados com gestos

A imprensa paulista devia uma grande reportagem sobre os massacres de maio de 2006, em que quase 600 pessoas, a maioria inocentes, foi massacrada pela Polícia Militar, em represália aos ataques do PCC.




Parte dessa dívida foi quitada pela Folha com a reportagem sobre os dez anos do massacre, “As Férias de Maio Sem Respostas” (http://migre.me/tJ9Fb), de Artur Rodrigues, Rogério Pagnan e Anever Prado.

A reportagem reconstitui os crimes mais ostensivos, da imensa série de depoimentos levantados ao longo desses dez anos pelas mães que se uniram para denunciar os crimes.

Não chega a aprofundar em dois episódios centrais.

O primeiro, a atuação de procuradores federais e do Conselho Regional de Medicina, que enviou médicos legistas para o Instituto Médico Legal. Sabia-se que o laudo médico era peça central para a apuração dos assassinatos. Assim que o corpo de legistas foi engrossado, o número de mortos diários caiu da casa de uma centena para o de algumas unidades.

O segundo, os responsáveis pelo episódio. Debita-se injustamente ao então governador Cláudio Lembo, em cujo governo ocorreu o massacre.

Lembo pegou o carro andando e não se deu conta do que vinha pela frente.

Fui testemunha ocular desse dilema de Lembo.

Assim que assumiu o governo, com Geraldo Alckmin se licenciando para concorrer à presidência, tomou a decisão de afastar o Secretário de Administração Penitenciária Nagashi Furukawa e ampliar o poder do Secretário de Segurança Saulo de Castro Abreu.

Nos meses anteriores, Saulo tinha se tornado um Secretário totalmente fora de controle, invadindo a Assembleia Legislativa acompanhado de uma tropa de PMs, mandando prender o dono de um restaurante por dificultar o estacionamento.

No meio da crise do PCC, conversei com Nagashi e com o Secretário de Justiça Alexandre de Moraes – que ainda não era o imitador de Saulo em que se converteu posteriormente.

Ambos me contaram que a segurança dependia de um entendimento entre as três Secretarias: de Justiça, de Segurança e de Administração Penitenciária. Mas nas primeiras reuniões Saulo perdeu a cabeça, brigou e, em vez de enquadrá-lo, o governador Geraldo Alckmin decidiu interromper as reuniões.

Com isso, desarticulou-se totalmente a segurança em São Paulo. Não havia mais investigação sobre os chefes do tráfico, presos, porque o Secretário de Segurança recusava-se a entrar no presídio. Disso se prevaleceu o PCC para uma investida, em plena campanha eleitoral.

Eu conhecia Nagashi dos anos 80, ainda como juiz de direito em Bragança Paulista. Sempre me pareceu um juiz exemplar.

Quando veio a notícia de que seria afastado – e Saulo fortalecido – rumei para o Palácio dos Bandeirantes e pedi uma conversa com o governador Cláudio Lembo.

Alertei-o para o risco que estava correndo de criar uma tragédia tirando Nagashi e fortalecendo Saulo, que já se mostrava totalmente fora de controle. Foi em vão. Lembo alegou que as informações que recebera é que Saulo era eficiente no seu trabalho.

Tudo foi planejado com método. Primeiro, motoqueiros encapuçados executando as vítimas. Na sequência, viaturas da PM apagando os vestígios. Nos dias dos massacres, as rádios das viaturas foram desligadas, para não serem captadas pelos repórteres. Os estudantes de periferia foram estimulados a irem para as escolas, com a falsa informação de que estava tudo normal. Foram assassinados rapazes que estudavam, que trabalhavam, grávidas. E a tragédia foi varrida para baixo do tapete.

Policiais civis que tentaram apurar os crimes tiveram suas delegacias cercadas por PMs ameaçadores. O Ministério Público Estadual refugou de suas responsabilidades.

Restaram apenas os lamentos e protestos das mães, que não deixaram os crimes cair no esquecimento e acabaram encaminhando as denúncias para a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Há anos tenta-se a federalização dos crimes, para passar as investigações ao Ministério Público Federal. O processo dormiu por anos na gaveta do Procurador Geral da República.

Ontem, quando a tragédia completa dez anos, o PGR Rodrigo Janot decidiu finalmente desengavetar o processo e passar a apuração dos crimes para a área federal.

Falta alguém em Nuremberg, e não são os que apertaram o gatilho. Foram as autoridades que premeditaram essas chacinas.

O comandante em chefe da PM e da Segurança paulista atendia pelo nome de Saulo de Castro Abreu, homem da mais estrita confiança do governador Geraldo Alckmin.

Artigo de 31 de maio de 2006, na Folha

LUÍS NASSIF 

O homem errado


A tragédia da segurança em São Paulo tem o nome e o sobrenome do secretário da Segurança Pública


MESES ATRÁS , houve reunião da área de segurança com o ainda governador de São Paulo, Geraldo Alckmin. Algumas vezes, ao longo de seu governo, Alckmin foi obrigado a arbitrar conflitos entre o secretário da Segurança Pública, Saulo de Castro Abreu Filho, e o da Administração Penitenciária, Nagashi Furukawa. Nessa reunião, presente também o secretário da Justiça, Alexandre de Moraes, Alckmin foi duro com Saulo. Chamou-o de “desagregador”.

Desde que entrou no governo, em 2002, Saulo atuou de forma desagregadora, tramando desde o primeiro dia contra Furukawa, um juiz de sólida reputação e de ações inovadoras na área penitenciária. Contra ele, Saulo tentou cooptar o secretário da Justiça e o secretário da Educação, Gabriel Chalita, entre outros. Havia uma diferença fundamental entre ambos. Furukawa queria que a polícia se concentrasse prioritariamente em prender os chefões do crime, os criminosos efetivamente perigosos. Saulo dispersava a ação policial em sua política-de-estatística. Não interessava o grau de periculosidade dos presos, contanto que melhorasse suas estatísticas. Noventa por cento das prisões eram em flagrante, denotando baixíssimo resultado das ações de inteligência.

Furukawa pretendia investir na construção de presídios, permitindo segregar as lideranças criminosas dos pequenos meliantes. Mas a explosão de prisões para crimes irrelevantes matava qualquer estratégia de combate profissional ao crime organizado. Lotaram-se os presídios, e os bagrinhos aderiram ou ficaram reféns dos tubarões do crime.

Mais que isso. Desde o governo de Mário Covas, havia uma determinação de que o comandante-geral da polícia não poderia falar diretamente com o governador, mas teria que passar, antes, pelo secretário da Segurança. Saulo se prevalecia desse controle sobre as informações para boicotar os colegas. Nem sequer há troca de informações entre a Polícia Militar e a Civil, para que o poder da informação não escape das mãos do secretário.

Se a polícia chega rapidamente, consegue estancar uma rebelião na Febem, na área de atuação da Secretaria da Justiça. Nas diversas rebeliões que ocorreram, o policiamento levava mais de uma hora e meia, porque Saulo dizia para o comando que só ele podia autorizar a operação. Quando havia uma rebelião nas penitenciárias, a polícia ficava sabendo em dez minutos; O secretário da Administração Penitenciária só era informado muito tempo depois. Além de se indispor com colegas, Saulo se afastou também do Ministério Público, conseguindo quebrar totalmente o contato entre o órgão e a polícia, que, aliás, nunca foi muito bom. Na cúpula do Judiciário paulista, a resistência é a mesma. Na área federal, jamais participou das reuniões entre secretários da Segurança de outros Estados, sob a alegação de que “minha polícia” é melhor do que todas as demais.

Por falta de conhecimento, de tempo para juntar as informações necessárias, o governador Cláudio Lembo, um homem de bem, deu cheque em branco para o homem errado. Mas a tragédia da segurança em São Paulo tem o nome e o sobrenome do secretário da Segurança Pública.

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