Por Jader Marques é Advogado, compartilhado de Empório do Direito –
O título desse artigo é mais do que uma autodefinição: é uma dolorosa constatação
Num ataque de imbecilidade nunca visto na história da minha morna existência, postei numa rede social um texto inacreditavelmente desastroso, de mau gosto, inadequado, intempestivo, cruel e, acima de tudo, racista.
Em linhas gerais – não gosto nem de lembrar dos termos do texto – entendi, como criminalista, que era necessário aguardar o conhecimento da situação de fato, antes de qualificar como racista a morte de um homem negro por seguranças brancos do Carrefour. O texto foi lamentável na forma e no conteúdo, porque refutava, ainda, a retaliação feita contra a empresa.
De forma absolutamente leviana, joguei com as palavras, fiz um raciocínio incorreto, panfletário, machucando as pessoas, enfim, tenho me punido bastante desde então. O remédio: leitura.
Num primeiro momento, com as manifestações contrárias ao meu post, ainda quis fazer valer minha verve de advogado, minha autoridade de velho, minha capacidade de tergiversar, ou seja, não satisfeito com o erro, quis resolver com a grosseria, (pseudo)autoridade, enrolação. Ficou ainda pior.
Resolvi eu mesmo respirar fundo e parei para ler com calma a manifestação da Prof. Ana Luiza Nazário e do Prof. André Nicolitt. Depois da leitura das duas manifestações, um só sentimento tomou conta da minha alma: vergonha. A mais terrível e insuperável sensação de vergonha, a qual, devo dizer, não me abandonou desde então. Tenho convivido com ela, enquanto respiro, trabalho, me alimento, falo com as pessoas etc.
Para resolver, escrevi uma péssima tentativa de explicação. Depois dela, um simples pedido de desculpas.
Pensei muito e resolvi contar o que vivi. Para escrever este texto, considerei Hannah Arendt e a sua emblemática frase: “Toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história”. Pois bem, meu relato tem o objetivo claro de confessar meu erro, como forma de purgar a vergonha que sinto, desde o dia em que me vi escancaradamente racista.
Escrevo, pois, em causa própria.
Considerando a noção de “lugar de fala” (RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017), escrevo também para me dirigir, não às pessoas que contestaram a minha postura, mas àquelas que apoiaram o meu texto, que se sentiram representadas nas minhas palavras, que manifestaram sua concordância.
Quero falar aos meus amigos brancos e às minhas amigas brancas.
Quero me dirigir à população de criminalistas da raça branca. Quero falar com aqueles e aquelas que não se consideram racistas, porque possuem vários amigos negros ou porque não se manifestam contra os negros. Quero falar para aqueles que pensam ser errado o slogan VIDAS NEGRAS IMPORTAM, porque TODAS AS VIDAS IMPORTAM. Finalmente, quero me dirigir a todos e todas que negam a importância das cotas, que falam em meritocracia, enfim, dirijo-me a quem entende que o racismo vem dos negros, quando falam de raça e lutam por espaço na sociedade.
Em primeiro lugar, importa admitir que sou racista. E, antes de dizer que cresceu rodeado de negros, que há negros na família, que adora negros, entenda o que é RACISMO e a noção de RACISMO ESTRUTURAL. Contra todas as formas de ignorância, livros.
A noção de racismo estrutural apresentada por Silvio Almeida (ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural. Belo Horizonte: Letramento, 2018), por exemplo, desconcerta as mais eloquentes formas e tentativas brancas de desviar do óbvio: racismo “é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam” (p. 25). O racismo está na estrutura, na forma como se desenvolvem as relações, na forma como se distribuem e são ocupados os espaços, na forma como algumas pessoas são privilegiadas e outras são subjugadas, enfim, é mais uma consequência de uma economia política que se desenvolve e se mantém há séculos, sendo o resultado de toda essa opressão, discriminação e violência contra a raça negra. O racismo é parte da ordem social, é uma decorrência da estrutura social, sendo tratado como algo “normal” e não como uma patologia ou desarranjo institucional (p. 38). E como se disséssemos a todo instante que a sociedade é assim mesmo e sempre será. Isto está errado.
Em segundo lugar, vale pensar que o movimento BLACK LIVES MATTER (Vidas Negras Importam), por tantos outros, não desqualifica ou desmerece as demais lutas e não desconsidera as vidas brancas. Conforme está no site do movimento (https://blacklivesmatter.com/about/), o BLM “foi fundado em 2013, em resposta à absolvição do assassino de Trayvon Martin”. O Black Lives Matter Global Network Foundation, Inc. “é uma organização global nos EUA, Reino Unido e Canadá, cuja missão é erradicar a supremacia branca e construir poder local para intervir na violência infligida às comunidades negras pelo Estado e vigilantes. Ao combater atos de violência, criar espaço para a imaginação e inovação negras, e centralizar a alegria negra, estamos ganhando melhorias imediatas em nossas vidas.”
Nesse ponto, é fundamental destacar que o slogan “vidas negras importam” poderia/deveria ser lido como “também as vidas negras importam” ou “vidas negras importam agora, com urgência”.
Em terceiro lugar, amigos brancos, precisamos entender o que é branquitude.
Branquitude não é o contrário de negritude, devendo ser destacado que esses conceitos surgem e se enraízam nos discursos em diferentes momentos históricos, envolvendo fenômenos e propósitos diversos. Negritude é um conceito tecido por um discurso voltado a realçar sentidos de pertença e orgulho negro, destroçados especialmente pelo colonialismo; a branquitude é um conceito elaborado a partir de um discurso ético, criado especialmente para desvelar processos e relações estruturais de dominação, para desmascarar a face oculta do colonialismo, como um operador sub-reptício de naturalização do branco e para transformá-lo em ideal e em universal (Conceição, Willian Luiz da, 1988- Branquitude (livro eletrônico): dilema racial brasileiro / Willian Luiz da Conceição. – Rio de Janeiro (RJ): Papéis Selvagens, 2020).
Na tese de doutorado intitulada “O encardido, o branco e o branquíssimo”, a pesquisadora Lia Vainer Schucman explica, com apoio em Frankenberg (2004), que a branquitude é produto da história e uma categoria relacional, que não tem significados intrínsecos, mas sim, socialmente construídos no espaço e no tempo.
Schucman também mostra que pode haver uma fissura entre a brancura e a branquitude, o que é verificado pelas respostas dos entrevistados, notadamente, quando sentem e vivenciam a experiência da raça, reconhecem privilégios materiais e simbólicos que a brancura lhes confere, assim como reconhecem o racismo na sociedade brasileira, mesmo não havendo diferenças biológicas entre negros e brancos, e que tiveram experiências de sentimentos racistas involuntários. Todas essas pessoas, além de reconhecerem essas questões, manifestaram apoio às políticas afirmativas voltadas para reparação do racismo em relação à população negra (p. 104).
Segundo Fernanda Bassani, orientadora de narrativa do livro “Para meu amigo branco” (SOARES, Manoel. Para meu amigo branco. Maiara Alvarez, 2020), branquitude é uma posição social que garante privilégios a partir de uma cor/raça que se possui, sem que o sujeito perceba isto. A incidência da branquitude faz com que o sujeito branco, especialmente o homem heterossexual, se reconheça como a regra universal da normalidade, o parâmetro de tudo, vendo apenas no outro a existência de uma cor, uma raça diferente. Por quê? Porque difere de si mesmo. Desconstruir a branquitude é reconhecer-se como branco, alguém que também tem um fenótipo específico e a partir daí desvendar o quão determinante isto foi na formação da sua identidade, oportunidades, julgamentos e posição social.
Torna-se fundamental, caras-pálidas, desde o lugar da nossa brancura, elaborarmos uma crítica à branquitude, admitindo que, ao nascermos, graças a cor da nossa pele, somos classificados socialmente e recebemos, imediatamente, atributos positivos ligados à identidade racial, tais como beleza, inteligência, educação, o que, uma vez introjetado em nós pela supervalorização do branco, em detrimento do outro, negro, vai consolidar um modelo de comportamento que reproduz, de forma violenta, toda a superioridade e supremacia da raça branca (historicamente mantida e ampliada).
Por tudo isso, ao reconhecer meus erros, ao admitir minha branquitude, ao manifestar minha vontade de superar toda essa cultura hegemônica da raça branca, que me faz negar ou diminuir a importância da luta antirracista e de valorização dos homens e das mulheres negras (as mais atingidas pela violência e discriminação), que me faz pensar que isso não me diz respeito, que não é culpa minha e, assim, me faz omisso, complacente e, portanto, igualmente racista e violento, por tudo isso, quero pedir às minha queridas e ao meu queridos criminalistas brancos que reflitam sobre o seu papel diante desse estado de coisas que estamos vivendo.
Na condição de criminalista, branco, heterossexual, racista (e assim encerro), quero convocar minhas/meus colegas a praticarmos uma advocacia que respeite as pessoas e os movimentos que lutam contra a discriminação racial em todas as suas mais variadas formas. É inaceitável que nossos clientes sejam condenados e recebam penas maiores em função da cor da sua pele; que nossas irmãs e irmãos de profissão sejam confundidos com os acusados na sala de audiência, pela cor da sua pele; que a nossa atuação ignore o racismo estrutural, que discrimina, prende, mata… pela cor da pele.
Vidas negras importam.
Imagem Ilustrativa do Post: Figures of Justice // Foto de: Scott Robinson // Sem alterações
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