Por Clarice Spitz, publicado em Projeto Colabora –
Colheitas antecipadas, reabilitação de castas e uso de variedades resistentes a doenças são maneiras de tentar driblar efeitos das altas temperaturas
Mesmo que a cena da rainha Elizabeth II bebendo o espumante produzido em sua propriedade, em Windsor, ainda não tenha descido goela abaixo dos franceses, acostumar-se a vinhos ingleses, nórdicos ou alemães pode se tornar mais que natural. Muito além da rivalidade ancestral entre a Ilha e o Continente, a crise climática tem imposto mudanças práticas para o vinho francês. Dentro de algumas décadas, poderá significar a superação de terroirs tradicionais, assim como a invenção de novos.
As projeções mais pessimistas apontam para a redução de metade dos vinhedos da Europa situada no entorno do mar Mediterrâneo até 2050. O aumento da temperatura interfere basicamente na diminuição da água para o cultivo e na alteração das características do vinho, gerando um aumento do teor alcoólico, uma perda de acidez e uma mudança no aroma.
Eventos climáticos extremos tendem ainda a aumentar o número de geadas e de tempestades, com consequências devastadoras sobre os vinhedos.
Mesmo que, no curto prazo, o aumento de temperatura possa significar até uma melhora da qualidade de vinhos de regiões ao Norte — onde produtores são autorizados a adicionar açúcar por conta própria quando a falta de sol não permite a maturação completa das uvas –, com os termômetros que batem os 46° C, aumenta-se o risco de doenças e de desequilíbrios.
Cabernet Sauvignon pode superar o Merlot
Seja com maior ou menor teor de preocupação, agricultores e especialistas concordam que, num futuro próximo, os terroirs franceses não serão mais os mesmos. O INRA, instituto de pesquisas em agricultura, estima que o mapa da viticultura do país possa se inverter até 2050. Nesse caso, o Sul dos tradicionais Bordeaux e Provence perderia espaço para regiões mais ao Norte, como a Bretanha e a Normandia, que passariam a ter condições mais favoráveis ao cultivo da uva. O mesmo valeria para países mais ao Norte do hemisfério e poderia favorecer até mesmo vinhos asiáticos.
Na França, onde o vinho é considerado produto de primeira necessidade, as ações já começaram. O instituto de agricultura acompanha com lupa 52 variedades de uvas para saber como reagem face aos efeitos da urgência climática. Em Bordeaux, já são esperados vinhos com uma presença maior de Cabernet Sauvignon, mais resistente a altas temperaturas, que de Merlot.
Na região de Champagne, onde por ora o aumento de açúcar nas uvas é bem-vindo, a Maison Bollinger se prepara para lidar com mudanças que devem se tornar problemáticas nos próximos 20 anos. Para manter as características de seu champanhe, ela reabilitou algumas castas, como o Pinot Blanc, o Pinot Gris e Arbanne que vêm se somar aos tradicionais Pinot Meunier, Chardonnay e Pinot Noir. As variedades hoje revisitadas eram utilizadas no século XIX e caíram em desuso por falta de viabilidade econômica. Hoje, em muitos casos, se mostram mais adaptadas para a manter a acidez das uvas em altas temperaturas.
O diretor de Marketing da Maison Bollinger, Clément Ganier, afirma que, além da mudança no processo de produção do vinho, o consumidor exige hoje transparência sobre as normas ambientais: “Ele quer saber a procedência da madeira que utilizamos e está pronto a pagar mais caro para ter certeza sobre a qualidade e a rastreabilidade do vinho”. E aproveita para alfinetar os vizinhos ingleses: “O fato de eles venderem vinho espumante nos motiva, mas não vendemos bolhas, vendemos Bollinger, e tudo que isso representa em termos de história e qualidade”.
Na região de Cognac, o grupo Domaines Francis Abecassis, que reúne quatro propriedades, também sentiu a pressão do consumidor e reduziu drasticamente o uso de pesticidas e fungicidas em seus 370 hectares de vinhas. A mudança gerou um aumento de cerca de 20% de custos, mas foi absorvida. “A conjuntura mudou e não tínhamos como não nos adaptar”, afirma Guillaume Chauvet, diretor da empresa.
Colheitas antecipadas em até sete dias a cada década
Um dos sinais mais visíveis do impacto do aquecimento global sobre os vinhedos é a antecipação da colheita. Com mais calor, as uvas costumam amadurecer mais cedo, o que exige uma colheita antecipada para manter o vinho com as mesmas características. Pelas previsões do INRA, a continuar no mesmo passo, a colheita deverá ser antecipada, em média, em seis a sete dias a cada década.
“Meus pais eram viticultores e, na época deles, a colheita ocorria no início de outubro, agora ela acontece em setembro”, afirma Patrice Piveteau, diretor-geral adjunto do Conhaque Frapin, cuja produção é exportada para 70 mercados internacionais.
Durante simpósio dedicado ao aquecimento global e ao vinho, na Vinexpo, feira profissional do vinho, em maio passado em Bordeaux, o presidente do INRA, Philippe Mauguin, ponderou: “Não é sensato dizer que antecipamos as datas das colheitas e que vamos continuar assim indefinidamente”.
O instituto trabalha ainda para regulamentar o uso de novas variedades de uvas, originadas de cruzamentos e resistentes a doenças, entre os vinhos AOC (designação de origem controlada). Elas já nasceriam com o benefício de requerer até 90% menos pesticidas. Hoje, elas são autorizadas apenas para os vinhos de mesa. “Em 2050, não vamos abandonar as variedades de uvas tradicionais, mas teremos necessidade de outras”, afirmou Mauguin.
Especialistas concordam que muito ainda pode ser feito pelos vitivinicultores para melhorar o uso da água. Há quem diga que a emergência de novas regiões e o declínio de outras vai depender também das condições de estabilidade dos mercados em uma geopolítica mundial que pode ser chacoalhada pelos efeitos do aquecimento global. Fato é que como disse a diretora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Christine Lagarde, em mensagem enviada aos principais profissionais do vinho, continuar com o “business as usual” será uma catástrofe.