Por Carolina Haber, publicado no Blog do Jota –
Em vez de seguir o STF e aumentar os recursos, Ministério da Justiça vai na direção oposta
tamos vivenciando outra crise no sistema penitenciário brasileiro. O problema é velho conhecido. Presídios sucateados, celas superlotadas, insalubridade, falta de assistência à saúde dos presos, péssimas condições de higiene. Vivemos um estado de coisas inconstitucional, na definição do Supremo: um quadro de violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais.
Para o Supremo, apenas transformações estruturais e a atuação conjunta de uma série de autoridades seria capaz de alterar essa situação de inconstitucionalidade. O tribunal fez recomendações nessa direção. Dentre elas, que a União libere, sem qualquer tipo de limitação, o saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN) para utilização na finalidade para o qual foi criado, proibindo a realização de novos contingenciamentos.
Contudo, os recentes movimentos do governo quanto a esse tema vão na contramão da decisão do Supremo.
É o caso da MP 755, de 2016. Os recursos do FUNPEN devem ser aplicados em construção, reforma, ampliação e aprimoramento dos estabelecimentos prisionais e seus serviços. A MP, porém, incluiu a possibilidade do FUNPEN ser utilizado para outros fins, ainda que ligados ao sistema penal: políticas de redução da criminalidade e financiamento a políticas e atividades preventivas, inclusive de inteligência policial, com a transferência de 30% dos recursos do superávit do fundo em 2016 para o Fundo Nacional de Segurança Pública.
Ao tratar do estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro, o Supremo avançou muito no tema, inclusive apresentando medidas concretas que poderiam resolver a situação. Agora, o Supremo está diante de nova oportunidade para reafirmar a importância do FUNPEN na tentativa de salvar nosso falido sistema prisional. Tanto o PSOL quanto o MPF entraram com um requerimento pedindo a inconstitucionalidade da MP 755, publicada cerca de quinze dias antes do massacre ocorrido em Manaus.
De concreto, portanto, a única medida apresentada pelo Poder Executivo para solucionar o problema do sistema prisional foi uma MP que retira recursos do fundo e amplia as hipóteses de investimento para outras áreas, como a segurança pública. Em vez de seguir o Supremo e aumentar os recursos, o Ministério da Justiça vai na direção oposta.
Depois das chacinas ocorridas no começo do ano, o ministro da justiça apresentou um plano de segurança pública que fala em racionalização e modernização do sistema penitenciário a partir de medidas pouco inovadoras. O plano fala em investimento em informações, mutirões carcerários, análise da situação dos presos provisórios e, como medidas mais concretas, indica onde vai investir o dinheiro do fundo, com a construção de novos presídios federais e repasse para compra de scanners, bloqueadores e tornozeleiras.
Em entrevista recente, o ministro da justiça Alexandre de Moraes defendeu a necessidade de gravar as conversas entre advogados e presos. Segundo Moraes, o problema está na possibilidade de lideranças presas se comunicarem com que está fora. Infelizmente, o problema é bem maior. Massacres como os vivenciados recentemente no país ocorrem porque as facções criminosas ocupam o vácuo deixado pelo Estado na gestão dos presídios. É o tipo de problema que o investimento sistemático de recursos do FUNPEN pode resolver. Cabe ao Supremo reafirmar a importância dos recursos que podem ser destinados à essa gestão e declarar a inconstitucionalidade da MP 755.
Uma decisão assim não teria nada de radical. Vale lembrar que outras cortes constitucionais foram bem além da decisão do Supremo. Em 2014 a Suprema Corte Americana determinou ao Estado da Califórnia que soltasse 30.000 presos para poder solucionar o problema penitenciário do Estado. Ao fazer isso, tocou em um ponto crucial: o caos penitenciário necessita de uma gestão melhor e da construção de mais vagas. Mas ele não será solucionado se a explosão do número de presos, 41% deles sem julgamento, não for revertida. Reduzir os fundos do FUNPEN, como fez o Poder Executivo, é uma afronta à decisão do Supremo, mas não há recursos que se façam suficientes se o número de presos continuar crescendo no ritmo atual.
O Supremo não se atreveu a enfrentar esse ponto na ADPF 347. E, muito menos, parece estar o ministro da justiça (que recentemente apoiou o aumento do tempo de cumprimento de penas para parte considerável dos presos brasileiros) disposto a aceitar essa direção. Sem isso, o estado de coisas inconstitucional pode ser afirmado e reafirmado pelo STF, mas será uma paisagem constante e vergonhosa da vida brasileira.
Carolina Haber – Diretora de pesquisa da Defensoria Pública do RJ e professora de Direito Penal
Foto da capa : Marcelo Camargo/ Agência Brasil (16/01/2017)