Por Nirton Venancio, cineasta, roteirista, poeta, professor de literatura e cinema
Na crônica “Os urubus”, de João do Rio, publicada no livro “A alma encantadora das ruas”, de 1910, o autor narra situações rotineiras e bem específicas de vendedores que ofereciam serviços funerários para enlutados que passavam a caminho do necrotério. O título da crônica, originalmente publicada no jornal Gazeta de Notícias, denomina de forma conotativa a natureza mórbida desses trabalhadores.
Nos parágrafos finais (páginas 83 e 84 da edição de 1997, Companhia das Letras), João do Rio disserta sobre o perfil daqueles fâmulos de rua, que mesmo com a frieza de anotar “os nomes e residências das pessoas mortas” na secretaria do necrotério Santa Casa e “só copiarem os que renderiam mais de 100$”, que disputavam entre eles vendedores “quem faz o luto em vinte e quatro horas mais em conta”, o autor via que aqueles pobres rapazes “impingindo com um sorriso à tristeza coroas e crepes, só para ganhar honestamente a vida, eram dignos de respeito”. “Por que urubus?”, perguntava-se, complacente.
O escritor, um dândi pelas ruas cariocas, refletia sobre esses personagens quando uma vez, depois de saltar do bonde no centro da cidade, teve a visão na mesma perspectiva da localização geográfica: a vizinhança do que seria o céu no desenho ondulante da então Praia de Santa Luzia, e o que se suponha como inferno na paisagem soturna do necrotério ao lado.
Depois de um tempo conversando com um dos vendedores, satisfeito em sua curiosidade de historiógrafo da vida urbana, decide ir embora. Já estava até incomodado. Um dos “urubus” pergunta-lhe se o colega teria “contado coisas a nosso respeito”. João do Rio diz que “não, absolutamente.”
O vendedor o segue oferecendo seus serviços, “Quando quiser uma coroa…”
– Deus queira que não! – diz, assustado.
E corre para o bonde que passava, livrando-se do agouro.
Onze anos depois da publicação, no dia 23 de junho, o cronista sentiu-se mal dentro de um táxi. Pediu ao motorista que parasse e fosse buscar um copo de água em algum local. Ao voltar encontrou o cronista morto, um infarto fulminante o deixou estirado no banco.
O cortejo de seu funeral foi um dos mais lotados na história do Rio de Janeiro, depois de Getúlio Vargas e Carmen Miranda. Estima-se que 100 mil acompanharam João do Rio até o seu enterro no São João Batista.
O jornalista e professor cearense Ronaldo Salgado, em seu ótimo livro “A crônica reporteira de João do Rio” (Edições LEO, 2006), diz que “Há uma justificativa de caráter mais específico: as crônicas de João do Rio, para além de uma tessitura feita nas fendas entreabertas das narrativas curtas e das reportagens, estabelecem pontes entre a Literatura e o Jornalismo.”. Uma escrita tão fascinante como “Os urubus”, apenas para apontar uma de sua vasta obra, exemplifica a análise de Salgado sobre aquele considerado o pioneiro da crônica-reportagem.
Falecido precocemente aos 39 anos, João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, seu nome de batismo, assumiu sua homossexualidade com firmeza e discrição. Foi o primeiro imortal a tomar posse vestido com o característico fardão da Academia.
Naquele dia 23, muitas coroas foram vendidas pelas aves catartiformes que o escritor eternizou em sua crônica.
Foto do post: publicada originalmente no semanário Fon-Fon, 1909.