Crônica sobre um técnico, “louco” e pai

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E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, fala, novamente, e bem do pai. Um pai que levou ao que nos disse Fernando Pessoa:
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
(“Lisbon Revisited” – Álvaro de Campos (heterônimo)  – 1923 – Fernando Pessoa)

Leia e entenda o motivo:




Beija-Flor, 24 de maio de 2024.

Prezado Editor, é verdade que os dois últimos textos que chegaram até você têm o crivo de assunto pessoal de minha parte. Em suma, escrevi sobre a minha vida para um público que não me conhece muito bem. Escrevi confissões, espero que não tenham soado inconfidências. Tive e tenho uma vida interessante que aqui e ali poderia ter sido melhor e será.
Ainda assim, reconheço: o que escrevi é da esfera do íntimo. Em todo caso, como todos nós tivemos pai ou gostaríamos de ter tido pelo menos um, a meu parecer o texto tem um lado também universal, que pode dizer algo a todos nós.


Meus filhos eram pequenos quando meu pai morreu. O meu filho mais velho, o Francisco, já tinha os seus oito anos, já tinha recordações felizes do lado do avô. Cecília, não. Ela era muito pequenininha na época. Sei que divago um pouco, mas era para lhe dizer que a depender das circunstâncias não se lembrar não é tão ruim assim. É um mecanismo eficiente de defesa psíquica.


Falando em defesas psíquicas, meu pai foi técnico em contabilidade na Petrobrás e depois, quando se aposentou, se tornou psicanalista com consultório e tudo. Herdei dele diversos livros de Freud e de Lacan que estão aqui na minha humilde biblioteca. Quanto a voltar ao batente, quanto ao optar por não parar de trabalhar, acho que meu pai não queria ficar em casa o tempo todo, preferindo levar uma vida mais ativa, o que ocorre por vezes com a vida no trabalho, especialmente quando este deixa de ser obrigação.


E eu sei: além do divã, muito provavelmente ele deu conta dos balancetes das associações de psicanálise da qual fez parte.


Enfim, meu pai não queria sossegar. Não lhe cabia bem a imagem de velhinho bem-comportado. Para falar a verdade, só reparei que meu pai envelheceu quando ele completou seus setenta e cinco, sei lá. Foi ali que seu rosto de poucas rugas ficara um pouco mais redondo, mais ou menos como um balão de gás.


Por derradeiro, mandei o texto abaixo para o meu irmão, que se lembrou imediatamente dos versinhos da Marieta, para decifrar o enigma da tabuleta:
“Dona Marieta
Escreveu na tabuleta:
Quem tem dinheiro fode
Quem não tem toca punheta!”

Bons tempos de rimas “sujas”! Meu irmão colocou a pitada de humor que faltava ao meu texto.
Vamos ao texto.

OITO ANOS SEM ELE
Em memória de Cícero Romeiro Batista, o primeiro da lista.
No tempo em que eu confiava nas minhas memórias, eu costumava falar de um sonho que meu pai teve e que me contou.
Dizia-me ele que sonhara que havia uma tabuleta em que havia algo escrito.
Só que a tabuleta, dizia ele, fora colocada tão lá no alto que ninguém conseguia ler o que estava escrito. Meu pai se ria. Haveria cabimento em se colocar um aviso em uma tabuleta que estava fora do alcance dos olhos dos leitores?


Eu costumava interpretar este sonho do meu pai com a dificuldade que ele mesmo se impôs: afinal, depois de ter se aposentado na Petrobrás o meu pai acabou se tornando psicanalista com consultório e tudo. No dia de seu enterro as três pacientes de meu pai choravam como viuvinhas, como as irmãs Cajazeiras.


Mas, afinal, qual era a dificuldade? Para mim, ela consistia na transição de carreiras: meu pai deixava o rigor matemático da contabilidade, das contas exatas, do que não deve haver resto, para adentrar no mundo dos significantes, da significação flutuante, da escuta, dos termos de Lacan e de Freud.
Era uma guinada e tanto. E havia muito o que aprender, mesmo se sabendo que an old dog never learn new tricks.


Meu pai, sem deixar de morar no Engenho Novo, também deixava o centro da cidade, o prédio da Petrobás da Avenida Chile, para frequentar reuniões de psicanalistas em Ipanema. Tudo quanto era psicanalista fumando à beça e falandopensando em francês, meu pai saía com cheiro de cigarro no blazer. Não adianta, psicanálise é uma terapia burguesa, sobretudo para os padrões de renda dos proletas.


Meu pai ia e vinha de ônibus na linha que liga ainda a zona norte à zona sul, um dos feitos mais notáveis de Leonel Brizola. praticamente até o fim da vida. Era o 4-meia-não sei o quê, depois o 232.


Lembro-me disso ou invento, não importa. Já no hospital, era um sábado de 2016, fomos Layla e eu visitá-lo. Como estava chovendo, ele nos pediu para irmos embora, para que não pegássemos chuva no caminho.


Eu sinto que eu também já tive uma baita curiosidade em saber o que está escrito na maldita tabuleta. Hoje não tenho mais. Virei-me de costas, as mãos pensas. Que se dane a lei.

Imagem: desenho de Cícero César sobre o pai

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970

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