Se a Rússia não aceitasse ser novamente o inimigo, então a Rússia seria pressionada a tornar-se o inimigo
Por CHRIS HEDGES*, compartilhado do Site a Terra é Redonda
Estive na Europa do Leste em 1989, relatando as revoluções que derrubaram as ditaduras comunistas ossificadas que levaram ao colapso da União Soviética. Foi um tempo de esperança. A OTAN, com o desmembramento do império soviético, tornou-se obsoleta. O presidente Mikhail Gorbachev estendeu a mão a Washington e à Europa para construir um novo pacto de segurança que incluiria a Rússia. James Baker, secretário de estado na administração Reagan, juntamente com o ministro das relações exteriores da Alemanha Ocidental Hans-Dietrich Genscher, garantiu ao líder soviético que, se a Alemanha fosse unificada, a OTAN não seria estendida para além das novas fronteiras.
O compromisso de não expandir a OTAN, também assumido pela Grã-Bretanha e França, parecia anunciar uma nova ordem mundial. Vimos os dividendos da paz pendurados diante de nós, a promessa de que as enormes despesas com armas que caracterizaram a Guerra Fria seriam convertidas em despesas com programas sociais e infraestruturas que há muito tinham sido negligenciadas para alimentar o apetite insaciável dos militares.
Naquela época, havia um entendimento quase universal entre diplomatas e líderes políticos de que qualquer tentativa de expansão da OTAN era uma insensatez, uma provocação injustificada contra a Rússia que obliteraria os laços e vínculos que felizmente surgiram no final da Guerra Fria.
Como éramos ingênuos. A indústria bélica não pretendia reduzir seu poder ou seus lucros. Começou quase imediatamente a recrutar os antigos países do Bloco Comunista para a União Europeia e a OTAN. Os países que aderiram à OTAN, que agora inclui a Polônia, Hungria, República Checa, Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Albânia, Croácia, Montenegro e Macedônia do Norte, foram forçados a reconfigurar suas forças armadas, muitas vezes através de grandes empréstimos, para se tornarem compatíveis com o equipamento militar da OTAN.
Não haveria dividendos da paz. A expansão da OTAN tornou-se rapidamente uma bonança multibilionária para as empresas que tinham lucrado com a Guerra Fria. (A Polônia, por exemplo, acabou de concordar em gastar 6 bilhões de dólares em tanques M1 Abrams e outros equipamentos militares dos EUA). Se a Rússia não aceitasse ser novamente o inimigo, então a Rússia seria pressionada a tornar-se o inimigo. E aqui estamos nós. À beira de outra Guerra Fria, da qual só a indústria bélica se beneficiará, enquanto, como escreveu W. H. Auden, as crianças pequenas morrem nas ruas.
As consequências de empurrar a OTAN para as fronteiras com a Rússia – agora há uma base de mísseis da OTAN na Polônia a 100 milhas da fronteira russa – eram bem conhecidas dos responsáveis políticos. Ainda assim, fizeram-no de qualquer forma. Não fazia qualquer sentido geopolítico. Mas fazia sentido comercial. Afinal, a guerra é um negócio, e muito lucrativo. É por isso que passamos duas décadas no Afeganistão, embora houvesse um consenso quase universal, após alguns anos de lutas infrutíferas, que tínhamos mergulhado num pântano que nunca poderíamos vencer.
Num telegrama diplomático classificado, obtido e divulgado pelo WikiLeaks, datado de 1 de fevereiro de 2008, escrito de Moscou e dirigido aos Chefes do Estado-Maior Conjunto, à Cooperação OTAN-União Europeia, ao Conselho de Segurança Nacional, ao Coletivo Político Rússia-Moscou, ao secretário da defesa e ao secretário de estado, houve um entendimento inequívoco de que a expansão da OTAN arriscava um eventual conflito com a Rússia, especialmente em relação à Ucrânia.
“A Rússia não só percebeu o cerco [pela OTAN], e os esforços para minar a influência da Rússia na região, mas também teme as consequências imprevisíveis e descontroladas que afetariam seriamente os interesses de segurança russos”, lê-se no telegrama. “Os especialistas dizem-nos que a Rússia está particularmente preocupada com o fato de que as fortes divisões na Ucrânia em relação à adesão à OTAN, com grande parte da comunidade étnico-russa contra, possam levar a uma grande cisão, envolvendo violência ou, na pior das hipóteses, uma guerra civil. Nessa eventualidade, a Rússia teria que decidir se interviria; uma decisão que a Rússia não quer ter que enfrentar…
Dmitri Trenin, Diretor Adjunto do Centro Carnegie de Moscou, manifestou receio de que a Ucrânia seja, a longo prazo, o fator mais potencialmente desestabilizador nas relações EUA-Rússia, dado o nível de emoção e nevralgia desencadeado por sua busca pela adesão à OTAN… Uma vez que a adesão permaneceu um assunto de divisão na política interna ucraniana, criou-se uma abertura para a intervenção russa. Trenin manifestou temor de que elementos do establishment russo fossem encorajados a intrometer-se, estimulando os EUA a encorajarem abertamente as forças políticas opositoras, e deixando os EUA e a Rússia numa postura clássica de confrontação”.
A administração Barack Obama, não querendo inflamar ainda mais as tensões com a Rússia, bloqueou a venda de armas para Kiev. Mas este ato de prudência foi abandonado pelas administrações de Donald Trump e Joe Biden. Armas dos EUA e da Grã-Bretanha estão sendo despejadas na Ucrânia, parte do 1,5 bilhão de dólares prometido em ajuda militar. No equipamento, estão incluídas centenas de sofisticadas armas anti-tanque Javelins e NLAW, apesar dos repetidos protestos de Moscou.
Os Estados Unidos e seus aliados da OTAN não têm qualquer intenção de enviar tropas para a Ucrânia. Pelo contrário, inundarão o país com armas, o que foi feito no conflito de 2008 entre Rússia e Geórgia.
O conflito na Ucrânia ecoa o romance Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel Garcia Márquez. No romance, o narrador reconhece que “nunca houve uma morte tão anunciada”, e, no entanto, ninguém foi capaz ou disposto a impedi-la. Todos nós que informávamos a partir da Europa do Leste em 1989 conhecíamos as consequências de provocar a Rússia, e, não obstante, poucos levantaram a voz para impedir a loucura. Os passos metódicos em direção à guerra ganharam vida própria, movendo-nos como sonâmbulos em direção ao desastre.
Quando a OTAN se expandiu para a Europa do Leste, a administração Clinton prometeu a Moscou que as tropas de combate da OTAN não seriam estacionadas na Europa do Leste, a questão decisiva do “Ato Fundador OTAN-Rússia sobre Relações Mútuas” de 1997. Esta promessa revelou-se, outra vez, uma mentira. Depois, em 2014, os EUA apoiaram um golpe contra o presidente ucraniano Viktor Yanukovych, que procurou construir uma aliança econômica com a Rússia em vez da União Europeia. Claro que, uma vez integrada à União Europeia, como se viu no resto da Europa do Leste, o passo seguinte é a integração à OTAN. A Rússia, assustada com o golpe, alarmada com as propostas da UE e da OTAN, anexou então a Crimeia, em grande parte povoada por falantes de russo. E a espiral de morte que nos levou ao conflito atualmente em curso na Ucrânia não pode mais ser contida.
O estado de guerra precisa de inimigos para se sustentar. Quando um inimigo não pode ser encontrado, um inimigo é fabricado. Putin tornou-se, nas palavras do senador Angus King, o novo Hitler, pronto para agarrar a Ucrânia e o resto da Europa do Leste. Os gritos de guerra, ecoados sem constrangimento pela imprensa, justificam-se drenando o conflito do contexto histórico, elevando-nos como os salvadores, e a quem quer que nos oponhamos, de Saddam Hussein a Putin, como o novo líder nazista.
Não sei onde isto vai parar. Devemos lembrar, como Putin nos lembrou, que a Rússia é uma potência nuclear. Devemos lembrar que, uma vez aberta a caixa de Pandora da guerra, ela desencadeia forças obscuras e assassinas que ninguém pode controlar. Eu sei disto por experiência própria. O fósforo foi aceso. A tragédia é que nunca houve qualquer disputa sobre como a conflagração começaria.
*Chris Hedges é jornalista. Autor, entre outros livros, de Empire of Illusion: The End of Literacy and the Triumph of Spectacle (Nation books).
Tradução: Fernando Lima das Neves.
Publicado originalmente no portal Scheerpost.