Por Lud Yajgunovitch, no Facebook
“O Presidente mandou comemorar o golpe”. Como? Leio de novo. “O Presidente mandou comemorar o golpe”. Calma, ele foi eleito com este discurso, não é exatamente uma novidade. Mas é. Ou não é e não é menos assustador por isso. Penso na minha mãe, primeiro num impulso de ligar para ela, depois numa espécie de alívio porque ela não viveu para assistir a isso. Alívio torto, já que as amigas dela viveram, meu pai viveu, eu vivi, meu filho viveu e ainda é pequeno e terá que conviver com tudo aquilo de nefasto que vai sobrar de um país onde o chefe de estado defende abertamente um projeto assassino que de repente parece eterno.
Respiro e mexo no Instagram. Posts sobre a decisão absurda e suas contra-decisões intercalados com fotos na praia, músicas lindas sendo ouvidas e declarações de amor. Num movimento automático e quase sem me dar conta, digito o nome da minha mãe no Google.
Descubro que fizeram um verbete da Wikipedia. Leio. Nada de mais. Mas tem um link para o vídeo de uma entrevista que não autorizamos que fosse publicado. Será que publicaram? Será que é esta? O link não funciona. Por que ela não autorizou? Por que eu não autorizei depois que ela morreu? Fomos paranoicas? Mas será? Será que publicaram? Depois eu vejo.
Saio pra almoçar no quilo próximo ao consultório. Sento com um prato saudável, orgulhosa de estar me cuidando. É o que é possível. Viver o da melhor maneira que puder, trabalhar bem e no que acredito, ir a manifestações, doar dinheiro pras vítimas do incêndio. Será? Não dá pra fazer mais nada?
Respiro. Tomo um gole de suco de abacaxi com hortelã, fresco. Sou interpelada pela fala da mesa ao lado. Um moço da minha idade que parece até gente normal narra com orgulho como aprendeu a bater em trombadinhas. “Na primeira vez… Aí demos a volta e o pegamos do outro lado… Fui aprender a lutar… Quando foi o relógio me deu muita raiva… você ficando forte e vai passando a intimidar o ladrãozinho, ninguém te assalta mais sem arma”.
Há prazer na voz dele e meu aspargo de repente me faz lembrar uma gosma branca que comi uma vez num bandejão qualquer e que até hoje não sei dizer se era mingau, creme de milho ou purê de batata. Asco. Mas aquilo era um banquete perto do que muitos têm para comer. A volta da fome, minha paciente estava fazendo uma matéria sobre isso. Os últimos dez moradores de rua paupérrimos que cruzaram meu caminho me vêm a cabeça, sua nudez, sua magreza, seu olhar entre o temeroso e o raivoso.
Tenho vontade de vomitar. Ou de gritar ao meu vizinho de mesa: “como mesmo você pode se orgulhar desse jogo de justiceiro, de bater em alguém com uma vida infinitamente mais cruel que a sua”? Respiro. Mudo de lugar torcendo para que ele vá embora rápido do restaurante. Ele vai. Foi rápido? Olho o relógio e dá tempo de tomar um café.
Volto andando no sol para o consultório, tentando aproveitar o calor fazendo carinho na minha pele. Lembro do amigo que, no carnaval, louco de MD comemorou o sol na pele dele como se fosse sexo. Rio.
Outra conversa, de transeuntes atravessando na faixa de pedestres ao meu lado, invade a minha cabeça esvaziada na luz: “se fosse comigo, minha mãe teria me tirado todos os dentes”. “A minha também”. A minha não. A minha jamais faria isso. Mas ela sabia bem o que era ter todos os dentes tirados. Ter os amigos tirados. A alma tirada.
O Presidente mandou comemorar o golpe.