Nem tive tempo para ficar triste ou explodir de raiva, não só porque o tsunami de gols que inundava nossa telinha não me permitia nem respirar (um, dois, três, quatro, cinco…), mas também porque saltei do sofá para acudir filha e filho que choravam copiosamente, desesperados e transtornados por concretizarem que a taça da Copa se esfarelava a cada bola que morria no fundo das redes (e das almas) do Brasil. Tenho comigo que, quando for contar a história daquele jogo para meus netos e netas, uma quentura de vergonha ainda irá fazer com que meu rosto fique vermelho, a indignação vai travar a voz e me fazer gaguejar.

Depois daquele trágico 8 de julho de 2014, nunca mais tinha tido coragem de rever o jogo, nem mesmo alguns lances ou melhores momentos. Foi meu apagão particular. O trauma me pegou forte. Só na semana passada, por conta do lançamento do livro “Sete atos, um final?”, de Darcio Ricca e Max Gehringer (dois apaixonados por futebol), e mais uma vez com as entranhas se revirando, resolvi finalmente voltar a encarar esse meu algoz boleiro.




O livro, publicado pela Chiado Books e lançado no último dia 17 de março no Museu do Futebol, em São Paulo, costura um relato minucioso da vergonhosa tragédia do Mineirão, num balanço de perdas e perdas que sistematiza o antes, o durante e o depois. Funciona como espécie de terapia, divã em que começamos “a falar sobre isso” e que nos permite exorcizar alguns demônios. “Para eles (os autores), o placar histórico não é causa, mas, sim, consequência de uma série de coisas que estavam e ainda estão erradas. Escrever (e ler) sobre isso é fundamental, até para que nunca mais se repita”, alerta o jornalista Celso Unzelte, na apresentação do livro.

A saga começa relembrando a demissão do técnico Mano Menezes, em novembro de 2012, justamente num momento em que, após engasgar, patinar e conhecer alguns fracassos (como a desclassificação precoce na Copa América de 2011), Mano vivia o seu melhor momento no comando da Seleção, tendo conseguido encontrar um esquema de jogo e uma boa base de boleiros. Para substituí-lo, numa operação de salvação nacional e do tipo “Brasil, ame-o ou deixe-o”, foram chamados Felipão e Parreira – que fez questão de dizer que o Brasil já tinha uma mão na taça.

Ao construir contextos, a narrativa passa pela efervescência das Jornadas de Junho de 2013, que tomaram conta das ruas do país no mesmo mês em que a Copa das Confederações servia como evento teste para o Mundial. Os protestos, que começaram contestando o aumento das passagens de ônibus, trens e metrô, transformaram-se em esperança e desejo de ampliação dos espaços democráticos e das conquistas de políticas públicas e cidadãs para serem, ao final, engolidos e ressignificados por grupos e forças conservadoras e reacionárias, com retrocessos e ataques a direitos que continuam a ser até hoje sentidos. A caixa de Pandora tinha sido aberta – e ecoou indecentemente no jogo de abertura da Copa, quando uma presidenta legitimamente eleita pelo povo foi ofendida com gritos histéricos e palavrões vindos das arquibancadas da “gente de bem”.

Campeão da Copa das Confederações, tendo batido a até então toda poderosa Espanha na final, com muita autoridade, a Seleção Brasileira passou a viver ainda mais sua síndrome de Clark Kent, um esquadrão imbatível aos pés dos reles mortais. Não sabiam que a nossa kryptonita vestiria em breve as cores do time mais popular do país, para quem torcia a vereadora Marielle Franco, brutalmente assassinada no Rio de Janeiro onde a Seleção sequer chegou a atuar no Mundial.

Darcio e Max passam pela preparação pífia do time, embriagado por falso favoritismo – “…a definição prévia do grupo em sua maior parte na formação da nova família Scolari (…), o excesso de confiança em atletas escolhidos (…), a falta de reavaliação de rotas (…) e a aposta em metodologia de pelo menos uma década atrás foram alguns dos fatores que levaram a seleção brasileira a viver numa espécie de ano sabático”. Batem duríssimo no discurso do ‘legado da Copa’ e na construção das arenas caríssimas – “tudo sem planejamento estruturado, sem conhecimento técnico, sem acuidade orçamentária, sem respeito ao dinheiro público, sem vontade política, sem acompanhamento diário, sem escrúpulos, sem vergonha na cara”. E lembram mais uma infeliz e sintomática fala de Parreira que, às vésperas do Mundial, fez questão de cantar em verso e prosa que “a CBF é um Brasil que deu certo”. A depender do ponto de vista, talvez seja mesmo…

Um dos pontos altos da obra está nos depoimentos dos jornalistas Gustavo Hofman e André Plihal, ambos da ESPN Brasil. O primeiro acompanhou a Alemanha durante o Mundial, em Santa Cruz de Cabrália; o segundo armou acampamento em Teresópolis. “A revolução no futebol alemão começa na Euro de 2000, depois da campanha horrível da seleção alemã. Ali, começa uma mudança radical no futebol alemão, desde a base nas escolas espalhadas pelo país ligadas à Federação, aos clubes, à mudança de conceito de jogo. (…) Eles poderiam perder a final, mas o planejamento foi feito de maneira praticamente perfeita: a escolha do local (concentração), a tranquilidade para trabalhar, a proximidade e a climatização. Tudo muito bem feito!”, lembra Hofman.

“Eu já tinha uma experiência larga de cobertura da seleção brasileira na Granja Comary e, claro, notei que a configuração geral estava muito diferente, desde a disposição dos campos até umas três tendas gigantes de patrocinadores com seus produtos (…) Outra coisa importante foi o número de folgas que a seleção brasileira teve. Era uma loucura! (…) Os quatro gols em seis minutos, para mim, são motivados principalmente pela fragilidade emocional daquela seleção. (…)  Tem outro detalhe desta seleção que pouca gente leva em conta, de que não era uma seleção para ganhar em 2014. Por idade, não era, só tinha moleque nessa seleção, quase todos ali vivendo sua primeira Copa”, contrapõe Plihal.

No capítulo 6 – “Intervalo? Pausa?”, mais um diferencial criativo da obra: os autores fazem uma minuciosa descrição, minuto a minuto, dos lances e angústias daquela cinzenta tarde de 8 de julho de 2014. “Tive a ideia como inspiração e homenagem ao livro ‘Anatomia de uma derrota’, do Paulo Perdigão, sobre o Maracanazo. Para escrever sobre cada minuto, levei cinco minutos, pois avançava e voltava a imagem, fazendo os registros. E fiz isso muito tempo depois, não mais no calor da emoção. Acho que fui o único ser humano a ver, em sequência, cinco vezes a partida, da subida das equipes dos vestiários até as entrevistas coletivas. Essa metodologia muda muito a percepção que se tem do jogo”, descreve Darcio.

Aprendemos com a surra, a blitzkrieg alemã, quatro gols em seis minutos, a pior e mais humilhante derrota de um anfitrião em Copas? Aí vem o ato final. Ou não. Sem mais spoilers. Boa leitura.