Um belo texto de Roberto Salim sobre uma época em preto e branco, em razão do caso do jogador corintiano Jô, que foi punido por jogar contra o Bahia com chuteiras verdes. Ou eram azuis?
Por Roberto Salim, compartilhado de Ultrajano –
Sou daquela geração de crianças criadas na rua de terra. Com pés cascudos e calcanhares grossos. Dedão dolorido e canela riscada. Assim era, minha gente! E chuteira não era chuteira…
Minha gente, a questão de domingo passado em Salvador era para ser resolvida por um oftalmologista, não por diretoria nem por jogador nem por torcedor: um doutor diria que a chuteira era azul turquesa e o outro doutor, do alto de sua condição de daltônico, sentenciaria com todas as letras: “É verde!” E os dois seriam convidados para a discussão em todas as mesas-redondas do país e estaríamos conversados: seriam xingados ou elogiados por palmeirenses e corintianos e pronto!
Problema resolvido… pelas redes sociais.
Mas não, tudo se complica por causa de um calçado tecnologicamente preparado para a disputa de alto rendimento do futebol nacional.
Uau!
Falando assim, até parece que meus pezinhos ‒ que já foram 41 e hoje se apertam no 42 ‒ calçaram chuteiras caras e feitas especialmente para mim na infância.
Claro que não.
Sou daquela geração de crianças criadas na rua de terra.
Com pés cascudos e calcanhares grossos.
Dedão dolorido e canela riscada.
Assim era, minha gente!
E chuteira não era chuteira.
O Tato, que era um dos craques da Rua Caiuby, lembra sim da primeira chuteira.
“Mas era ruim pra caramba… nem marca ela tinha.”
Isso mesmo, minha gente.
Às vezes, não tinha nome de fabricante.
Não tinha grife.
“Minha primeira chuteira era feita de um couro duro, os cravos eram feitos com um couro redondo e mais grossos!”, conta o Renatão. Ele jogava de volante no Rio Branco, que mandava seus jogos onde hoje passa a Avenida Sumaré. “A chuteira criava calos nos dedos e machucava a sola do pé! Depois de umas cinco partidas é que ficava macia.”
Pode ser que a do Renatão ficasse realmente macia.
Mas a minha…
E outra coisa de que me recordo bem: nós não falávamos chuteira, na nossa linguagem de moleque era chanca.
E quase ninguém tinha chanca.
O meu amigo Alemão ganhou uma com os pregos nas travas.
E foi fazer teste no São Paulo.
“O técnico era o seu José Poy e, depois do treino, me mandou voltar no dia seguinte.”
O Alemão era um ponta-direita veloz, mas a chuteira e os pregos não ajudavam muito. Cansado como era e com dores nos pés, preferiu desistir da carreira logo no início. E não se reapresentou ao técnico tricolor.
Já o meu amigo Vitinha lembra até hoje o dia em que nos vestiários do Pinheiros botou pela primeira vez o calçado, que foi entregue a ele pelo técnico do time. Ele estava acostumado a jogar descalço e se atrapalhou.
“Era incômodo calçar aquela chanca que era muito pesada e difícil de amarrar. A gente passava o cordão por trás do calcanhar, era complicado.”
Ele lembra que não rendeu metade de seu futebol brigador de atacante impetuoso por causa da chanca que só existia de uma cor: preta.
“Era difícil até de se equilibrar, porque as cravelhas eram altas.”
Cravelhas, Vitinha?
“O que são cravelhas?” ‒ perguntei ao velho amigo.
E ele explicou que eram as travas que eram colocadas embaixo da chuteira, na sola, para dar maior estabilidade na grama.
Santa Marcelina!
Como eu furei os meus pés por causa dessas cravelhas ou travas.
Quando ganhei minha primeira chuteira, quem ajeitou os pregos no solado foi provavelmente o seu Lauro, o sapateiro da Rua Diana. Acho que foi lá que o meu pai, o velho Jamil, levou o precioso calçado para dar aquela garibada.
Mas por mais que se ajeitasse, quando a gente pisava no chão, o prego entrava na sola e catava o calcanhar, que com o tempo ficava todo furadinho.
Era uma festa!
“Eu gostava do barulhinho que os preguinhos faziam no chão, quando a gente entrava em campo”, lembra o Antero, que jogava de lateral-direito nos seus tempos de menino no Bom Retiro.
“Eu lembro também que a gente amarrava a chuteira passando o cordão por baixo da chanca.”
Chanca…
A gente também chamava de bicanca na minha rua. Disso eu lembro bem. Como não esqueço que, jogando na rua de terra com a camisa do Vasquinho, torci o pé e o meu tornozelo ficou uma bola. Não fosse o benzimento da Dona Arinda, acho que eu tinha baixado hospital.
Mas como diria o Milton Leite: “Segue la pelota!”
Não dá para esquecer que íamos buscar sebo no açougue do Seu Américo não só para passar na bola Drible número 4, como para proteger a chuteira, que ficava sebosa, mas lustrosa.
Era assim naqueles anos 60.
Bola vermelha, quase pro marrom.
Chuteira, chanca ou bicanca indiscutivelmente preta.
E cueca branca.
E não importava o time para o qual você jogasse ou torcesse.
Era assim.