Por Claudio Lovato, jornalista e escritor –
Nasci em 1965. Em 1979, portanto, eu tinha 14 anos, e foi com essa idade que ocorreu um dos episódios inesquecíveis da minha experiência como brasileiro vivendo então sob uma ditadura militar.
Eu morava em Porto Alegre, no Bom Fim, meu eterno bairro do coração. Estudava em colégio público, o Anne Frank, e, já botando as manguinhas de fora, começava a passar boa parte do dia com os meus amigos na rua. Boa parte do dia e tentando estender isso até a noite, o máximo que eu pudesse.
Naquele ano, 1979, o período mais duro das barbaridades cometidas pelo regime militar já havia passado, mas ainda estávamos longe de viver uma realidade democrática. Longe mesmo. O regime só viria a ser considerado oficialmente encerrado seis anos depois, em 1985.
Pois foi em um dia qualquer de 1979, quando eu me preparava para encontrar os camaradas ali na rua João Teles, na esquina com Henrique Dias, que ouvi do meu pai a seguinte pergunta/advertência:
“Escuta, tu não estás falando de política aí na rua, né?”
Meu velho. Preocupado. Um homem com formação política de esquerda – sem nunca ter sido um miltante nem ter alimentado pretensões políticas, nunca, mas um homem sem hesitações ideológicas.
A pergunta veio assim, repentina, direta, reta.
A resposta nem tanto:
“Não… Claro que não…”
Uma resposta mentirosa, que ele preferiu aceitar sem mais questionamentos.
É a primeira vez que conto esse episódio em texto. Lá se vão 35 anos. Meu pai, apreensivo, e, ao mesmo tempo, não querendo, ele próprio, assumir diante do filho o papel de entidade repressora, um pai temeroso em relação às possíveis atitudes do filho de 14 anos, arrematou assim aquela conversação:
“Cuidado, hein.”
Escrevo isso agora porque é o que de melhor me ocorre fazer para processar (digerir seria o termo mais apropriado) a imagem de brasileiros indo às ruas para manifestar sua recusa em aceitar o resultado de um pleito absolutamente democrático e, no caso de alguns, para pedir intervenção militar.
De início, quando me contaram que isso estava ocorrendo, achei que fosse brincadeira, uma piada de amigo gozador. Depois vi as fotos.
Olhando para aquelas faixas na internet, uma pergunta me veio à cabeça, de imediato:
“Essa gente sabe o que está fazendo?”
Inventariei duas respostas possíveis:
“Não, eles não sabem o que estão fazendo, porque desconhecem a história do país ou porque esqueceram-se dela ou porque a ira lhes cegou completamente, e, nessa mistura de ignorância, esquecimento e ódio, estão fazendo isso”.
E:
“Sim, eles sabem o que estão fazendo, sabem o que estão pedindo, conhecem a história toda, lembram-se bem dela, e assim mesmo estão fazendo ”.
Não importa qual das duas respostas seja a que se encaixa mais precisamente na realidade. São todas bizarras. Diante delas, senti isto, apenas isto: um grande orgulho do menino de 14 anos que andava pelas ruas do Bom Fim, em Porto Alegre, em 1979, e também do velho dele, que, à sua maneira, soube transmitir ao filho a ideia de que se precisa amar de verdade o país em que se nasceu e no qual se vive.