Marina Amaral, codiretora da Agência Pública
A imagem da escola derrubada por um trator durante o despejo do acampamento Quilombo Campo Grande, em Minas Gerais, onde vivem 450 famílias, me fez lembrar uma frase de D. Pedro Casaldáliga, que faleceu, aos 92 anos, no sábado passado (8). “Acho que a humanidade é um desastre e, simultaneamente uma beleza”, disse o bispo dos pobres, dos indígenas, dos sem-terra, em uma entrevista na revista Caros Amigos, em 1998.
Ele era então um jovem de 70 anos, bem humorado e, apesar de jurado de morte no Araguaia, o fundador do CIMI – Conselho Missionário Indígena -, aliado dos Xavante na longa luta contra invasores, e também da CPT – a Comissão Pastoral da Terra -, única entidade a contabilizar as vítimas de conflitos fundiários no país, continuava a pregar a utopia: “Estou plenamente convencido de que não haverá paz no mundo até que não haja realmente distribuição de terra, distribuição de renda e distribuição de ciência”. Nada mais atual.
É também nisso que acreditam os militantes do MST, como os que estavam no Quilombo invadido, para quem D. Pedro, “o guerreiro desarmado”, como definiu Caros Amigos, é um guia, um profeta. Em mais de 40 anos de luta por reforma agrária, o MST nunca partiu para a agressão armada, apesar de vítima recorrente de pistoleiros e agentes do Estado violentos, comprometidos com interesses privados.
Majoritariamente formado por agricultores familiares, o movimento é hoje um grande produtor de alimentos orgânicos e cumpre um papel fundamental na defesa dos direitos humanos, especialmente daqueles abandonados pelo Estado, a quem Casaldáliga dedicou a vida.
A brutalidade da cena na Escola Popular Eduardo Galeano, retratada por Daniel Camargos, na Repórter Brasil, quando, pouco antes da demolição, crianças e adultos correm para tentar salvar os livros enquanto os policiais do choque batem os cassetetes nos escudos, ressalta, por contraste, o amor e a resistência da comunidade, aquela beleza simultânea ao desastre que é a humanidade, da qual falava o bispo, também poeta.
Todos os que conhecem os acampamentos e assentamentos do MST sabem que a escola é sempre a primeira tenda a ser erguida, junto com o banheiro e a cozinha. As que visitei tinham janelas de plástico transparente recortando a lona preta e serviam um lanche mais saudável do que a merenda escolar tradicional.
Quando impossível construir a escola, as sombras das árvores abrigavam estudantes e professores. Um compromisso do movimento cuja dimensão temos agora, com milhões de estudantes da rede pública sem aulas pela incompetência e omissão do governo em lidar com a educação na pandemia.
A violência policial em Minas seguia pela tarde de quinta-feira, com um incêndio na área do acampamento, que vivia do que plantava, sobretudo café orgânico. As terras ocupadas são de uma usina que faliu nos anos 1990 deixando seus empregados, entre eles vários dos atuais acampados, sem indenização. Não são “vagabundos”, nem “invasores” que estão ali, como dizem seus detratores – muitos deles adeptos da violência para valer, como Nabhan Garcia, o homem das milícias rurais no governo Bolsonaro.
D. Pedro, enterrado à beira do Araguaia depois de 50 anos de luta por terra para quem nela vive, costumava dizer: “quando fizerem a minha autópsia, vão encontrar terra no fígado e no coração”. Na entrevista de Caros Amigos, o jornalista Ricardo Kotscho lembrou da frase e perguntou o que mais encontrariam, além da terra. D. Pedro respondeu: “Vão encontrar muito sonho, muita utopia, e por isso mesmo, muita esperança. Eu tenho um poema que termina assim: “E em última instância, esperança”.”
Descanse em paz, D. Pedro Casaldáliga, que “sua humilde, sábia e forte presença” ande conosco “em cada passo dessa luta”, como escreveu, em sua homenagem, o MST.