Era o que se dizia 27 anos atrás: tudo ia mudar na Polícia Militar de São Paulo após o caso Favela Naval, quando o mecânico Josino foi morto pelo PM Rambo com um tiro nas costas.
Por Hugo Souza, compartilhado ode Come Ananás
na foto: Março de 1997: O PM Otávio Lourenço Gambra, vulgo Rambo, atira gratuitamente nas costas do mecânico Mário José Josino.
Noite de 31 de março de 1997. Na sede do Clube Militar, no Rio de Janeiro, generais, tenentes-coronéis e outras viúvas brindavam aos 33 anos do golpe de 1964 quando William Bonner abriu o Jornal Nacional enfileirando três palavras arrasadoras para definir as cenas a serem exibidas de uma herança direta da ditadura: “abuso, violência e covardia”.
E seguiu:
“Soldados da PM de São Paulo transformam batidas na periferia em sessões de terror. Humilhações, agressões, extorsão, fuzilamento. As cenas, exclusivas, foram gravadas por um cinegrafista amador e revelam extrema crueldade contra cidadãos indefesos, suspeitos ou não. O Jornal Nacional adverte que as imagens são fortes, mas tem o dever de denunciar”.
Estourava ali o caso Favela Naval. As imagens, gravadas dias antes, mostravam policiais do 24° Batalhão da PM de São Paulo dando tapas na cara, surras de cassetete, depredando os carros de moradores e visitantes da favela em Diadema, cidade vizinha à capital paulista. Na cena mais forte da reportagem de Marcelo Rezende, o PM conhecido como Rambo executa o mecânico Mário José Josino com frieza impressionante, com um tiro nas costas.
Josino nem tinha furtado sabão de lavar roupa, como fez Gabriel Renan da Silva Soares no último 3 de novembro, em São Paulo, logo antes de ser executado com vários tiros nas costas pelo PM Vinícius Lima Brito, o Rambo de Tarcísio de Freitas e Guilherme Derrite – um dos muitos Rambos de Tarcísio e Derrite -, enquanto corria com o sabão na mão.
Isso porque tudo iria mudar na PM de São Paulo após o caso Favela Naval. O impacto das imagens da violência e do sadismo da PM em Diadema foi tão forte que o então governador do estado, Mário Covas, chegou a pedir uma PEC do fim das Polícias Militares. As PMs não acabaram, mas a PM de São Paulo passaria por “profundas transformações” – era o que se dizia -, com base no respeito aos direitos humanos e no policiamento comunitário.
Porém, o caso de Gabriel Renan foi apenas mais um, um dos mais recentes, entre a miríade de abusos, violências e covardias; humilhações, agressões e extorsões; mais um entre o sem-fim de fuzilamentos de suspeitos ou não pela PM de São Paulo desde que estourou o caso Favela Naval, 27 anos atrás e cinco anos após o massacre do Carandiru.
(Cinco anos: em 2015, um então 1º tenente da Rota disse em uma mensagem de áudio num grupo de PMs no WhatsApp que era “vergonhoso” um policial de São Paulo não matar pelo menos três pessoas em um intervalo de cinco anos. O nome do 1º tenente era Guilherme Derrite).
Um dos mais recentes casos paradigmáticos do grau de violência policial em São Paulo aconteceu no último domingo, 1º de dezembro, quando Marcelo do Amaral foi arremessado de uma ponte pelo PM Luan Felipe Alves Pereira, do 24° Batalhão, o mesmo batalhão do caso Favela Naval.
Marcelo foi jogado por Luan no córrego Cordeiro, na Zona Sul de São Paulo, de uma altura de três metros, a uma distância de três quilômetros do mercado Oxxo onde Gabriel Renan foi assassinado pelo Rambo de Tarcísio e Derrite por causa de dois sachês de Ariel e um refil de Omo Líquido Lavagem Perfeita.
No Brasil, a rede Oxxo é controlada pelo Grupo Nós, joint venture entre a mexicana Femsa e a Raízen, do magnata Rubens Ometto. As eleições municipais de 2024 foram a quarta eleição seguida em que Ometto é o campeão de doações de campanha. Em 2022, o dono da Raízen doou R$ 200 mil só para o candidato ao governo de São Paulo que prometia acabar com a câmera acoplada à farda do PM.
O mesmo que, eleito, governando, chegou a responder assim, meses atrás, quando foi questionado pelo aumento da violência policial no estado: “Pode ir na ONU, na Liga da Justiça, no raio que o parta, que não tô nem aí”.
E o Rambo da Favela Naval? Em 1999, ele foi condenado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo a 65 anos de prisão pela execução do mecânico Josino. Em 2001, o mesmo TJ reduziu a pena para 15 anos. Hoje um homem livre, o ex-PM Otávio Lourenço Gambra é dono de uma empresa de vigilância patrimonial em São Bernardo do Campo.
Sobre Josino, morto pelo Rambo com um tiro nas costas, no banco de trás de um carro, após ser agredido, humilhado e finalmente liberado numa blitz; sobre sua vítima, Gambra disse assim, anos atrás: “ele assumiu o risco”.