Da Tragédia à Farsa, por Zizek

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Publicado no Jornal GGN – 

John Gray (boo) on Zizek (sigh)

“Da Tragédia à Farsa”

Eu quero desenvolver uma linha de raciocínio muito simples e linear sobre um ponto: por que na nossa economia a caridade não é mais apenas uma idiossincrasia de alguns caras legais, mas o constituinte básico da nossa economia.




Gostaria de começar com o futuro do assim chamado “Capitalismo Cultural”, a forma do capitalismo hoje em dia, e então mostrar como a mesma coisa se aplica à economia no sentido mais estrito do termo.

Principalmente, se nos velhos tempos – por “velhos tempos” refiro-me a algo bem preciso, antes da transformação do capitalismo pós-68 naquilo que geralmente chamamos de capitalismo cultural pós-moderno preocupado com a ecologia, e por aí vai. O que mudou?

O que mudou é que antes dessa época havia uma simples (mais ou menos simples) oposição entre “aqui é o consumo, você compra, você especula etc, etc …” e aquilo que ficava mais “acima”, o que você faz por uma sociedade como … como Soros.

Ele é ainda do velho tipo, eu afirmo.

Para simplificar, de manhã ele pega o dinheiro, de tarde ele devolve metade do dinheiro para caridade, para o apoio a causas, etc.

Mas argumenta-se que, hoje em dia, a tendência crescente do capitalismo é juntar as duas dimensões num construto único e idêntico.

De forma que quando você compra algo, o seu dever anti-consumista de fazer algo pelos outros, pelo meio-ambiente, etc, já vem incluído.

Se vocês acham que estou exagerando, dêem uma volta na esquina, e entrem em alguma loja da Starbucks.

Vocês verão como eles lhes dizem explicitamente, e eu cito a campanha deles, “Não é apenas aquilo que você está comprando,”

“É a causa que você está comprando.” E então eles descrevem para vocês, ouçam:

“Quando você compra no Starbucks, independentemente de você se aperceber ou não,”

“você está comprando algo maior de que apenas uma xícara de café,”

“você está comprando uma ética do café”

“Através do nosso programa Starbucks Planeta Comum,”

“nós adquirimos mais café do que qualquer outra empresa no mundo baseado em um comércio justo”

“garantindo que os agricultores que cultivaram as sementes recebam um preço justo pelo seu duro trabalho”

“E nós investimos e melhoramos as práticas de plantio de café e comunidades”

“É um bom karma do café”

“E uma parte do preço do café Starbucks ajuda a decorar o ambiente com mobília confortável, etc, etc”

Isso é o que eu chamo de Capitalismo Cultura na sua essência.

Você não compra apenas um café, você compra o próprio ato do consumo. Você compra a própria redenção por ser um consumidor. Você faz algo para melhorar o meio-ambiente, você faz algo para ajudar crianças famintas na Guatemala, você fal algo para reestabelecer o sentido comunitário aqui e acolá, etc, etc.

Isto … de novo … eu poderia continuar como o …quase absurdo exemplo que é o chamado Tom’s Shoes, uma empresa americana cuja fórmula é “1 para 1”.

Eles dizem que para cada par de sapatos que você compra com eles, eles dão um para alguma nação africana, etc, etc, de forma que você saiba que “1 para 1”, um ato de consumo mas, incluído nele, você paga para ser redimido por fazer algo de bom pelo meio-ambiente etc, etc

Isto … isto cria uma espécie de … como posso dizer … de super-investimento semântico, ou fardo.

Não se trata de comprar apenas uma xícara de café, mas de preencher, ao mesmo tempo, uma série de mandamentos éticos, etc, etc. E, de novo, esta lógica, penso eu, está, hoje em dia, quase universalizada, como … sejamos honestos …. Quando você vai a uma loja, provavelmente você prefere comprar maçãs orgânicas.

Por que? Seja honesto consigo mesmo.

Eu não acho que você realmente acredite que aquelas maçãs que custam o dobro do preço das velhas maçãs geneticamente modificadas “que todos adoramos”, que elas sejam realmente melhores.

Eu afirmo que aí nós somos cínicos, céticos, mas isso faz você se sentir melhor “Faço algo pela nossa Mãe Terra, pelo nosso planeta, etc, etc”. Você compra isso tudo. Então a minha questão é que este interessante curto-circuito em que o próprio ato egóico de consumo já contém o preço do seu oposto.

Baseado nisso tudo, acho que devemos voltar ao velho e bom Oscar Wilde que ainda é o que melhor descreveu esta lógica da caridade

Deixem-me citar apenas algumas páginas do início do seu “A alma do homem moderno sob o socialismo”, onde ele diz que, abre-aspas,

“é muito mais fácil ter simpatia pelo sofrimento,”

“do que ter simpatia pelo pensamento”

“As pessoas vêm-se cercadas de uma pobreza hedionda,”

“por uma feiúra hedionda, por uma fome hedionda.”

“É inevitável que elas sejam fortemente afetadas por tudo isto”

“De acordo com admiráveis, mas mal-direcionadas intenções,”

“Elas, de forma muito séria e sentimental,”

“atribuem-se a tarefa a si próprias de remediar os males que vêem”

“Mas os seus remédios não curam a doença,”

“Elas apenas a prolongam”

“Na verdade, os seus remédios são parte da doença”

“Elas tentam resolver o problema da pobreza,”

“por exemplo, mantendo os pobres com vida”

“ou no caso de uma escola muito avançada,”

“entretendo os pobres”

“Mas isto não é uma solução”

“É um agravamento da dificuldade”

“O objetivo correto é tentar reconstruir a sociedade”

“de uma tal forma que a pobreza seja impossível”

“e que as virtudes altruístas tenham conseguido realmente evitar o desvio deste objetivo”

“Os piores donos de escravos são aqueles que são bons para os seus escravos”

“e que assim impedem que o núcleo do sistema seja percebido por aqueles que sofrem com ele”

“e entendido por aqueles que o contemplam”

“A caridade degrada e desmoraliza”

“É imoral usar a propriedade privada”

“de forma a aliviar os males horríveis que resultaram da instituição da propriedade privada”

Acho que estas linhas são mais atuais que nunca. Por mais bonito que possa parecer, rendimento básico, ou este tipo de trato com os ricos não é a solução. Há para mim um outro … por causa de uma série de problemas … Vejo aqui um outro problema. De novo, isto é para mim a última tentativa desesperada para fazer o capitalismo caminhar para o socialismo

“Não descartemos o mal”

“Vamos fazer o próprio mal trabalhar para o bem”

Lembrem-se, vocês não são velhos o suficiente, eu sou.

Como éramos malucos há trinta, quarenta anos atrás sonhando com o socialismo com uma face humana

Da forma como está hoje, o mais radical horizonte da nossa imaginação é o capitalismo global com uma face humana. Temos as regras básicas do jogo acrescentamos a elas um pouco mais de humanidade, mais, mais tolerância, mais benefícios, etc, etc

Primeiro, a minha atitude aqui é dar ao Diabo o que ao Diabo pertence e reconheçamos que nas últimas décadas, pelo menos, até recentemente, pelo menos na Europa Ocidental, quero dizer, não estou de papo furado,

Não pensem que em algum momento da história da humanidade, um percentual relativamente alto da população viveu em relativa liberdade, bem-estar, segurança, etc, etc. Eu vejo isto como uma ameaça gradual, mas nem por isso menos séria.

Quando eu dei a entrevista para Hard Talk, ontem o cara, otário, que é um cara brilhante, não é apenas um otário qualquer, ele disse-me: “Mas você é basicamente misantropo”. Eu disse-lhe “Sim!”, eles louvam a nação britânica.

“Você sabe muito bem que há um certo tipo de misantropia” que é muito melhor como atitude social do que este otimismo profundamente caridoso.

Acho que uma mistura de uma leve – não uma pesada – tendência apocalíptica deixem-me chamar-lhe de … como dizem … soft

Gianni Vatimmo fala de pensamento soft. Eu não concordo com ele mas eu chamaria tendência apocalíptica soft. Não é 2012, nós sabemos, mas nós estamos chegando a um certo ponto zero.

As coisas estão, infelizmente, [ … ] ecologicamente, socialmente com novos apartheids, etc, estamos chegando a um certo ponto – biogenética, etc – onde … eu não estou dizendo, é óbvio, não sou um idiota que será um retorno ao velho partido leninista de forma alguma. De novo, estou certo aqui: a experiência comunista do século XX foi foi uma mega, mega – do ponto de vista ético, político, econômico, etc – catástrofe.

Eu apenas estou dizendo que se os velhos valores caridosos do liberalismo – eu os amo, mas … – a única forma de os salvar é fazer algo mais

Sabem o que estou dizendo?

Não sou contra a caridade, meu Deus! Num sentido abstrato, claro, é melhor do que nada.

Apenas estejamos cientes de que há um elemento de hipocrisia aí de uma forma que, e não duvido de gente que o conheceu de que Soros é um cara honesto mas há um paradoxo, ele conserta com a mão direita o que estragou com a esquerda

É tudo o que digo. Por exemplo, claro que devemos ajudar as crianças, é horrível ver uma criança cuja vida está arruinada por não poder pagar uma operação que custa 20 dólares.

Mas a longo prazo, como teria dito Oscar Wilde, se você apenas opera a criança, então ela vai viver um pouco melhor, mas na mesma situação que o produziu.

Tradução: Gustavo Lapido Loureiro

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