Por Tatiana Dias e Leandro Demori, publicado em The Intercept Brasil –
“FALAR NÃO PODE ser crime. Nunca”, tuitou Danilo Gentili na semana passada. Sua condenação a seis meses de prisão por uma ofensa contra a deputada Maria do Rosário, do PT gaúcho, o transformou instantaneamente em um mártir contra o que chamam de “patrulha do politicamente incorreto”. Gentili deu entrevistas defendendo o direito à liberdade de expressão, falou sobre os perigos da censura e apontou a hipocrisia de artistas e personalidades de esquerda que comemoraram a sua condenação.
Achei que era “Proibido Proibir” @caetanoveloso pic.twitter.com/UNiMNNr4e8
— Danilo Gentili (@DaniloGentili) 14 de abril de 2019
Foi alvo até de um tuíte de solidariedade do presidente Jair Bolsonaro, que defendeu seu “direito de livre expressão e sua profissão”. A direita se uniu em apoio ao comediante e transformou o caso em um exemplo dos princípios autoritários que estariam, segundo essa lógica, embutidos no ideário progressista. Ok.
Mas Danilo Gentili não tem a mesma tolerância com a liberdade de expressão quando o alvo é ele. O comediante processou pelo menos quatro pessoas por crimes contra a honra – alguns deles criminalmente, ou seja, podem ter como resultado uma pena de prisão. Depende exclusivamente do juiz de turno. Danilo Gentili reclamou da sentença dura – a cadeia – que, na prática, quer impôr a quem o critica.
Em uma das ações movidas pelo comediante, ele processou criminalmente por calúnia e difamação uma jornalista da editora Abril que publicou um texto crítico a ele.
Na ocasião, em 2016, o Brasil estava em choque com a notícia de um estupro coletivo de uma menina de 16 anos no Rio de Janeiro e um tuíte de Gentili de quatro anos atrás havia voltado à tona. Em 2012, Gentili havia publicado: “O cara esperou uma gostosa ficar bêbada para transar com ela. Todos sabemos o nome que se dá para um cara desses: gênio”.
Quando o tuíte ressurgiu, associado ao estupro coletivo, foi logo apagado, mas o comediante não conseguiu segurar sua repercussão negativa. Foi mencionado no texto da jornalista da Abril – já fora do ar –, que dizia que ele é uma das personalidades que incentivam a cultura do estupro. Gentili não gostou. Alegou que o texto “ofendeu sua honra” e que “superou a liberdade de expressão” – argumentos parecidos com os dos advogados de Maria do Rosário contra ele. Não apenas processou a jornalista – que nos pediu para não ter seu nome divulgado – como fez isso na esfera criminal, ou seja: em última instância, ela poderia ser presa pelo que publicou.
A justiça não acatou. Gentili ainda apelou, mas voltou a perder. “É certo que a apelada pode exercer seu direito de crítica e de expressão, ainda que utilize expressões consideradas ‘ríspidas’ ou ‘mordazes’, sem que isso caracterize o crime contra a honra”, escreveu a juíza Maria Fernanda Belli na decisão. Segundo ela, os comentários “pungentes” e “categóricos” só demonstraram “intuito crítico da jornalista”, que se indignou com as falas de Gentili.
Para justificar o processo, advogados de Gentili falam de ‘ofensas vis e graves’ que incitam os telespectadores a ‘atentar contra a honra’ dele.
O mesmo tuíte também foi o estopim para outro processo por crime contra honra movido pelo comediante. Ainda em 2016, o jornalista José Trajano, então comentarista do programa Linha de Passe, da ESPN Brasil, disse que Gentili é um “personagem engraçadinho que se posta como se fosse um sujeito que faz apologia do estupro em nome do humor”. Parece pouco para quem chamou uma parlamentar de “puta”.
Mas não: Danilo Gentili achou a crítica tão ofensiva que fez um textão, falando em “máquina de moer reputações”, e entrou, mais uma vez, com uma queixa-crime contra o jornalista por injúria – crime cuja pena vai de três meses a três anos de prisão, além de multa.
“Tratam-se, na espécie, de ofensas vis e graves que apenas incitam os telespectadores a atentar contra a honra do autor, através de alegações inverídicas e injuriosas que em nada condizem com seu caráter e conduta pessoal, apenas denigrem sua imagem e causa transtornos no âmbito pessoal e profissional”, alegaram os advogados de Gentili.
O comediante perdeu. De novo. Apelou, mas a justiça negou a instauração da queixa-crime. O Ministério Público, em sua manifestação, disse que “as liberdades de expressão e crítica” deveriam preponderar sobre “eventual intenção de denegrir a honra subjetiva” de Gentili. A relatora Flávia Poyares Miranda ainda argumentou que, por mais que o comediante não faça “expressa apologia ao estupro” ele “efetivamente faz troça de fatos que, em tese, poderiam caracterizar o também grave crime de posse sexual mediante fraude”.
“É direito que José Trajano possa ter de desgostar do humor feito por Danilo Gentili (lícito ou ilícito que seja) e de externar aberta crítica a ele”, escreveu a relatora.
Ainda há processos de Gentili contra a blogueira Cynara Menezes e ao jornalista Paulo Nogueira, do site Diário do Centro do Mundo. Todos pela mesma razão: o comediante diz ter ficado ofendido.
Nem comentaristas de Facebook escaparam
Os alvos das investidas judiciais de Gentili para preservar sua própria honra não são apenas jornalistas. Em 2017, ele processou o Facebook para remover comentários que considerou ofensivos – e, também, para divulgar os IPs que permitissem que os 13 comentaristas fossem identificados e, assim, processados no futuro.
No Brasil, segundo o Marco Civil da Internet, os provedores de internet (como o Facebook) podem ser responsabilizados por conteúdo ofensivo se não removerem após uma ordem judicial. Por isso, Danilo Gentili entrou na justiça para garantir a exclusão de 16 comentários que considerou ofensivos na página do Comedy Central Brasil. Os advogados de Gentili exigiram que o Facebook pagasse R$ 3 mil de multa por dia caso os pedidos não fossem atendidos.
A justiça negou o pedido na primeira instância, argumentando que não houve ofensa – foi um “mero aborrecimento”, afinal Gentili é uma figura pública que está sujeita a críticas e que os comentários se limitaram à atuação profissional do autor. Mas o comediante – que reclama que “patrulhas proíbem você de falar o que você acredita” – não se conformou e apelou.
Desta vez, a justiça acatou. A decisão obrigou o Facebook a apagar os comentários em 24 horas, além de revelar o cadastro e os últimos dados de acesso dos comentaristas considerados ofensivos por Gentili. Desta forma, com os IPs, é possível descobrir a operadora de telefonia que eles usam – e, assim, chegar a seus nomes completos, datas de nascimento, RG, CPF e endereço.
O desembargador Salles Rossi entendeu que a discussão em questão não é a defesa da liberdade de expressão – ou seja, dos comentaristas terem se manifestado –, mas sobre a rede social divulgar informações sobre os críticos de Gentili. Como a Constituição brasileira veda o anonimato, o juiz decidiu pela divulgação dos dados “para, posteriormente, ingressar com as ações cíveis e criminais cabíveis contra cada um dos ofensores”.
Assim, a máquina de processos de Danilo Gentili ganhou, em julho do ano passado, mais 13 nomes para abastecer sua paradoxal máquina de liberdade de expressão.
‘O politicamente correto é hipócrita’
Danilo Gentili foi condenado a seis meses de prisão por injúria, exatamente o mesmo crime que ele tentou imputar à jornalista que o acusou de fomentar a cultura do estupro, a José Trajano e aos outros comunicadores que disseram o que ele não quis ouvir. Muito convenientemente, os processos movidos pelo próprio Gentili foram omitidos na sua defesa mordaz da liberdade de expressão ao longo da última semana.
A esfera cível tem mecanismos eficientes para coibir ofensas contra a honra – o pagamento de indenização, por exemplo, é um deles. O próprio Gentili já foi condenado a indenizar uma mulher ironizada por ele por ser a maior doadora de leite materno do Brasil. A justiça criminal, na qual Gentili foi condenado e a qual usa para processar outras pessoas, e que pode colocar alguém na cadeia, é um mecanismo punitivista extremo – e, por isso, concordamos com as preocupações levantadas sobre as possíveis consequências da decisão criminal contra o comediante. É a defesa de um princípio, algo que Gentili – que quer cadeia para quem fala coisas sobre ele – não fez. Está apenas defendendo a si próprio.
Mas o que vale para ele vale também – ou deveria valer – para quem o critica. A liberdade de expressão, se for mesmo considerada um direito fundamental, vale para todos os lados. Ou não? O que mais espanta no processo contra Gentili é o fato de o juiz não ter substituído a pena de prisão. A substituição de pena em crimes sem violência ou grave ameaça e que não ultrapasse quatro anos de reclusão é direito do acusado. Não importa se contra Danilo Gentili. Machuca mais a democracia que o juiz não respeite esse direito do que se Danilo sofra uma pena considerada “leve”. Que se aumente as multas em vara Civel, se for o caso.
Quando retuitou a solidariedade do presidente Jair Bolsonaro, Gentili se disse muito “honrado”. “Assim como nunca imaginei um dia ser condenado à prisão por protestar contra censura nunca imaginei também contar com apoio presidencial”, ele escreveu. Não espanta para um humorista de situação. Também disse que ficou aliviado por entender que o post “significa um registro do compromisso do governo com a liberdade de expressão”.
Bolsonaro, vale lembrar, parece seguir a mesma cartilha do comediante: em 2018, ele foi o político que mais tentou censurar publicações na internet. Não é uma relação entre o presidente e um humorista, mas entre o candidato e um cabo eleitoral. Esperamos que essa opinião não dê processo.