Estudo da Unicamp analisou estabelecimentos em três cidades paulistas; expansão traz problemas de regulação e fiscalização dessas cozinhas, que barram visitantes e são invisíveis até para a vigilância sanitária
Por Leandro Melito, compartilhado de O Joio do Trigo
Chegou a hora do jantar e você está sem tempo para cozinhar. Olha no iFood e escolhe um restaurante que conhece e confia, aquele lugar onde você já se sentou para comer várias vezes, e faz o pedido. Mas você sabia que a sua refeição pode estar vindo de uma dark kitchen? É uma probabilidade alta: pelo menos um em cada três restaurantes cadastrados na plataforma iFood na cidade de São Paulo é uma cozinha-fantasma.
Os dados são de um estudo dos pesquisadores da Unicamp Diogo Cunha e Mariana Piton, do Laboratório Multidisciplinar em Alimentos e Saúde (Labmas). “É um percentual que a gente achou elevado, a gente estava esperando entre 10% e 15%”, afirma Cunha, que é professor associado da Faculdade de Ciências Aplicadas da universidade.
As dark kitchens são cozinhas comerciais que trabalham exclusivamente para delivery e não oferecem espaço para o consumo dos alimentos, como os restaurantes tradicionais. Tiveram um boom de crescimento durante a pandemia e se tornaram uma tendência incontestável do setor. Pelo seu modelo de negócio, trouxeram uma série de desafios de regulação e fiscalização, bem como problemas urbanísticos. Até mesmo autoridades sanitárias reconhecem que elas são invisíveis, e grandes empresas do setor atuam de forma pouco transparente: impedem visitas de cidadãos e da imprensa em suas cozinhas, violando um direito garantido ao consumidor desde os anos 1990.
O artigo Exploring dark kitchens in Brazilian urban centres: A study of delivery-only restaurants with food delivery apps [Explorando as dark kitchens no centros urbanos brasileiros: um estudo de restaurantes só para delivery com aplicativos de entrega de comida, em tradução livre] foi publicado em 16 de maio na revista Food Research International. Além de Cunha e Piton, fazem parte do estudo outros pesquisadores de Unicamp, Unifesp, USP, University Central Lancashire (do Reino Unido) e Gdansk University (da Polônia), que integram o projeto internacional “Desvendando a dark kitchen: percepção do consumidor, mapeamento e perfil de segurança alimentar”, financiado pela Fapesp.
A pesquisa analisou 3 mil estabelecimentos, divididos igualmente entre três cidades: São Paulo, Campinas e Limeira. Em São Paulo, as cozinhas-fantasma representam pelo menos 35% dos restaurantes. Em Campinas e Limeira, são 24,4% e 22,5%, respectivamente.
Na verdade, os pesquisadores acreditam que esse número seja ainda maior, pois muitos restaurantes apresentam fortes indícios de ser dark kitchens, mas, por falta de informações, tiveram de ser classificados no levantamento como indefinidos. “Tem cara de porco, focinho de porco, orelha de porco, mas a gente não fala que é porco. Como não conseguimos confirmar, não nos responderam, ou não tinha dados atualizados, não classificamos [como dark kitchen] e ficou como indefinido. É uma pesquisa científica, a gente tem que se ater ao método”, explica Cunha.
As informações foram coletadas na plataforma entre dezembro de 2020 e janeiro de 2023, por meio de um software, e analisadas caso a caso. O Google Street View foi utilizado para verificar as fachadas dos restaurantes. Quando as informações eram insuficientes, a checagem foi realizada por email ou ligação telefônica para o estabelecimento.
Os três mil restaurantes avaliados, nos três municípios, foram escolhidos por serem os mais bem colocados na plataforma, dentro da delimitação geográfica da pesquisa. Do total de estabelecimentos, 65,2% foram classificados como restaurantes tradicionais, 27,1% como dark kitchens e 7,7% como indefinidos.
Uma das conclusões da pesquisa é que as dark kitchens vieram para ficar. “Elas não vão deixar de existir. A tendência inclusive é de crescimento econômico. Todas as expectativas que a gente pesquisou é de aumentar o ganho do setor de alimentação via dark kitchen”, diz Cunha.
Para se ter uma noção, em 2020, 40% do total de refeições fora de casa eram preparadas exclusivamente para delivery – um aumento de 71% em relação ao ano anterior, de acordo com a pesquisa Crest, citada no artigo dos pesquisadores. O levantamento mais recente da Crest, divulgado em março de 2023, aponta que os pedidos feitos exclusivamente via aplicativos cresceram mais de 1.000% em relação a 2016 e já são o dobro do período pré-pandemia. Não há um monitoramento do número total de dark kitchens no país, mas sabe-se que elas se expandem junto com o delivery e os pedidos por plataformas digitais.
“Não dá para esperar que, agora que a pandemia acabou, esse pessoal vai migrar. Não vão, porque é um modelo de negócio muito simples de fazer e bastante lucrativo, porque tem custo muito reduzido”, afirma Cunha.
Falta de transparência e de informação
Apesar de representarem um grande percentual dos estabelecimentos, é muito difícil identificar uma dark kitchen no ambiente das plataformas. “Não há nada na interface do usuário nesses aplicativos que faça a distinção entre um restaurante convencional e uma dark kitchen. Portanto, mesmo que a pessoa saiba da existência desses serviços de alimentação, não conseguem identificá-lo rapidamente para fazer sua escolha”, diz Cunha.
Além disso, ainda há muito desconhecimento na população sobre as dark kitchens, alertam os pesquisadores. Em um estudo dos mesmos autores sobre o tema, publicado na Food Research International em agosto de 2022, eles analisaram a percepção dos consumidores em relação a esse tipo de empreendimento, tanto da perspectiva econômica, quanto da segurança do ponto de vista sanitário. Embora o termo esteja bastante disseminado entre a população – 73,4% dos entrevistados conheciam a expressão – o estudo constatou que os consumidores não sabem direito como as dark kitchens funcionam. “Elas podem até achar que sabem, mas no geral ainda não sabem”, diz Piton.
Segundo o estudo, as pessoas tendem a achar que as dark kitchens são como os restaurantes tradicionais, que seguem uma legislação consolidada e contam com a fiscalização regular de órgãos públicos, como a vigilância sanitária – o que ainda não é uma realidade em relação às cozinhas-fantasma.
Isso pode levar os consumidores a subestimarem os riscos em relação a esse tipo de estabelecimento. “Se a gente [acha que] tem um órgão que fiscaliza, e nós confiamos que ele está fiscalizando corretamente, automaticamente, o que está disponível para mim, vai estar seguro”, explica Piton.
A pesquisa também mostrou um dado preocupante: os consumidores acham que empresas como o iFood não são responsáveis pelos alimentos vendidos pelos restaurantes cadastrados. “As pessoas enxergam os aplicativos de delivery de alimentos como uma lista telefônica”, resume Piton.
Da perspectiva do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), a responsabilidade pelo alimento deve ser dividida entre restaurantes, dark kitchens e plataformas de delivery. “Nós entendemos que a responsabilidade é compartilhada e solidária. O Código de Defesa do Consumidor define que a responsabilidade é de todos aqueles que estão na cadeia produtiva”, afirma o advogado da área de relacionamento do instituto, Igor Marchetti.
Estabelecimentos invisíveis
Embora estejam sujeitas aos mesmos padrões sanitários dos restaurantes convencionais, o estudo alerta que as dark kitchens representam um desafio para as autoridades de vigilância sanitária devido à falta de registro oficial e de inspeções realizadas antes de sua abertura. Outro agravante, segundo os pesquisadores, é que há poucos estudos ou informações oficiais sobre a segurança dos alimentos produzidos nesses locais. Por tudo isso, recomendam um plano de ação ou regulamentação, da perspectiva sanitária, específica para as dark kitchens.
A visão é compartilhada pelas próprias autoridades sanitárias. “A gente, enquanto Vigilância Sanitária, não consegue enxergar esse tipo de estabelecimento”, afirmou a O Joio e O Trigo, por telefone, Aline Borges, presidente do Instituto Municipal de Vigilância Sanitária do Rio de Janeiro (Ivisa-Rio), onde ainda não há uma lei municipal que regulamente o funcionamento das dark kitchens. “A gente precisa ser demandado para conseguir conhecer as dark kitchens. Não conseguimos fazer uma varredura no município como um todo. A dark kitchen veio para fortalecer esse nicho de delivery, mas de fato precisa de regulamentação.”
Ou seja, a vigilância precisa receber uma denúncia de consumidores para poder fazer uma vistoria. É só então que os agentes podem ir até o estabelecimento para verificar as condições de higiene no local. O instituto recebe, em média, 500 reclamações mensais, incluindo restaurantes tradicionais e delivery. “A gente identificou uma dark kitchen a partir de denúncias, um conglomerado de cozinhas que não tem acesso ao público para consumo no local. Fizemos a fiscalização e encontramos problemas”, diz Borges.
São Paulo ganhou recentemente a Lei Municipal 17.853/22, promulgada em dezembro do ano passado, que regulamentou a atuação das dark kitchens na capital, estipulando um período de 90 dias para a adequação dos empreendimentos. No início de maio, o prefeito Ricardo Nunes publicou o Decreto 62.365, que regulamenta a lei e estende, em mais 90 dias, o prazo para adequação das cozinhas-fantasma.
Marchetti, do Idec, ressalta que a legislação aprovada determina a fiscalização desses estabelecimentos, assim como a divulgação das autorizações e das licenças no saguão do prédio de cada dark kitchen.
“Existem vários aspectos que permeiam a alimentação e devem ser observados para evitar contaminações. Esse tipo de situação pode até bloquear o estabelecimento enquanto não for regularizada. Essa é uma postura que existe da parte da Anvisa e deve ser garantida. As condições sanitárias do dia a dia devem ser observadas”, ressalta.
Os pesquisadores alertam ainda que há diferentes modelos de dark kitchen, dos hubs empresariais às cozinhas familiares de fundo de quintal – e cada um deles oferece desafios variados em termos de vigilância sanitária. “Apesar de todos eles terem as características principais de uma dark kitchen, o [modo] como eles vão ser problemáticos é diferente. Futuramente é importante entender a diferença e não generalizar tudo como dark kitchen”, afirma Piton.
Dark kitchens impedem entrada nas cozinhas
Grande parte das denúncias feitas à vigilância sanitária em relação a restaurantes surgem da visita às suas instalações, quando o consumidor nota falta de higiene, falta de cuidado no armazenamento de alimentos ou mesmo a presença de insetos e roedores.
Com a entrega da comida exclusivamente por meio de aplicativos, o acesso do consumidor ao local deixa de acontecer, o que também reduz a capacidade de fiscalização pública. “O consumidor exerce uma pressão, que deixa de existir na dark kitchen”, afirma Cunha. “Se num lugar que tem essa pressão pela limpeza, organização e uso de uniformes a gente já encontra muito problema, imagina num lugar onde não tem pressão nenhuma para que isso aconteça”, reforça o pesquisador.
Durante três meses, a reportagem do Joio tentou visitar uma unidade da Kitchen Central em São Paulo, mas sem sucesso. A empresa, uma das maiores do ramo no Brasil, opera com a construção de enormes hubs com dezenas de cozinhas-fantasma, que são depois alugadas para terceiros. Comandada pelos sócios Jorge Pilo e Guilherme Vasconcelos, a Kitchen Central representa a startup estadunidense CloudKitchens no Brasil, empresa criada por Travis Kalanick, fundador e ex-CEO da Uber. Kalanick deixou o cargo na Uber em junho de 2017 após o envolvimento da empresa e diretores em uma série de escândalos, inclusive acusações de sexismo. Durante sua gestão, o aplicativo da Uber foi acusado de violar a privacidade dos usuários, fato que teria sido ocultado por Kalanick.
O executivo também foi o responsável por iniciar o processo de expansão da CloudKitchens dentro e fora dos EUA: China, Índia, Coreia do Sul e Brasil entraram na rota da empresa. A primeira unidade em São Paulo foi inaugurada no bairro da Lapa em junho de 2020 em um galpão de 950 m², com capacidade para 35 cozinhas.
Desde então, a Kitchen Central tem se envolvido em conflitos com os moradores dos bairros residenciais onde se instala. Os vizinhos dessas cozinhas-fantasma reclamam dos barulhos dos equipamentos, que lembram “turbinas de avião” e chegam a despertá-los de noite, e sofrem com o trânsito intenso de entregadores e a descarga de mercadorias sem hora pra acontecer. Os moradores também são prejudicados pelo cheiro forte de fritura 24h por dia, que dá “ânsia de vômito”, e da poluição do ar – eles dizem que encontram material particulado, oriundo das coifas, dentro dos seus apartamentos. Os relatos dos vizinhos das dark kitchens são o foco da nossa segunda reportagem sobre o tema, que será publicada em breve.
Enquanto os restaurantes tradicionais estão concentrados nas áreas centrais das cidades, as dark kitchens estão geograficamente pulverizadas, diz Cunha. “Os restaurantes tradicionais estão onde as pessoas trabalham, mas as dark kitchens ficam onde as pessoas moram. Eles buscam locais baratos para se localizarem, perto das pessoas, perto dos bairros. E aí tem todo esse conflito.” O problema é que a instalação de imensos hubs, no meio de bairros residenciais, faz parte do modelo de negócio das dark kitchens e gera uma série de desafios urbanísticos e regulatórios.
Por todos esses motivos, nos parecia importante conhecer pelo menos uma unidade da Kitchen Central, por ser um exemplo emblemático, não só do sucesso econômico das dark kitchens, mas também dos problemas que elas podem representar para a população.
Assim, desde fevereiro, entramos em contato com a empresa de diferentes formas, mas não tivemos resposta. Em abril, visitamos a rua Guararapes, no Brooklin, na zona sul de São Paulo, onde está localizada uma unidade da Kitchen Central. Falamos com vizinhos do estabelecimento, nos apresentamos na porta da empresa e pedimos para entrar, mas fomos impedidos. Deixamos nosso contato na portaria e só então, dias depois, a assessoria de comunicação nos respondeu – apenas para dizer que não permitiria a divulgação das imagens feitas no hall de entrada do estabelecimento.
Aproveitamos a ocasião para solicitar novamente o agendamento de uma visita e uma entrevista com algum representante, mas ambos foram negados. A Kitchen Central se negou inclusive a responder, por meio de nota, aos questionamentos apresentados pela reportagem. “Agradecemos o espaço. Mas, no momento, declinamos a participação da empresa.”
A lógica das dark kitchens é manter a imprensa e os consumidores afastados das suas cozinhas. “Eles não têm o interesse de fazer essa fidelização com o cliente físico, porque o cliente deles não é físico. Preferem ficar no anonimato, por isso nem colocam nome ali [na fachada], porque realmente não querem nenhum tipo de incômodo. Nem seu, nem vigilância, nem de ninguém”, diz Cunha.
Os moradores vizinhos das unidades da Kitchen Central em São Paulo também reclamam dessa falta de transparência. A profissional de relações públicas Mariana Paker, de 41 anos, cuja varanda dá para os fundos de uma cozinha-fantasma na Lapa, na zona oeste de São Paulo, conta que só conseguiu entrar no estabelecimento junto de vereadores. “Veio uma caravana de cinco vereadores na minha casa em 2021, porque eles queriam ver. Foi o único dia que a Kitchen Central me deixou entrar na operação deles”, diz ela, que chegou a se mudar para outra cidade pelos incômodos causados pelo hub de cozinhas.
A historiadora Myriam dos Santos Cardoso, de 83 anos, é vizinha de uma unidade da Kitchen Central no Brooklin, na zona sul da cidade, e teve a mesma experiência: só conseguiu entrar no espaço em 2022, com a presença do vereador Eduardo Suplicy (PT-SP).
Conhecer uma cozinha é um direito
A reportagem do Joio, assim como qualquer outro morador da cidade de São Paulo, tem o direito de entrar no interior desses estabelecimentos. Esse direito está previsto no Decreto nº 34.557, de 1994, que regulamentou a Lei nº 11.617. “Ao público consumidor fica assegurado acesso à cozinha e a outras dependências de restaurantes, hotéis e similares situados no Município de São Paulo, onde sejam preparados e armazenados os alimentos destinados ao consumo”, afirma o documento.
Os proprietários dos estabelecimentos são obrigados, portanto, “por si ou por seus prepostos, a permitir o acesso, adotando as providências necessárias para que as normas higiênico-sanitárias vigentes sejam preservadas”. A negativa do acesso ao estabelecimento pode ser comunicada à autoridade sanitária e acarretar em multas ao estabelecimento.
Prestes a completar 30 anos, a lei foi elaborada durante o boom dos restaurantes de fast food na cidade, o que gerou uma mobilização para garantir a qualidade da comida oferecida nesses espaços. Segundo o Idec, a legislação também se aplica às dark kitchens.
“O fato de não ter consumo no local não significa que o acesso às instalações da cozinha é impedido. Impedir o acesso do consumidor às dark kitchens é um retrocesso nesse sentido de transparência de informações”, diz Marchetti.
Ao fecharem suas cozinhas para a visitação, ressalta o advogado do Idec, as cozinhas-fantasma vão na contramão, inclusive, das práticas de mercado. “É um contrassenso do que é o mercado hoje, do que os grandes restaurantes têm pensado, inclusive os fornecedores. Não condiz com o que é esperado pelo princípio da transparência, boa fé, informação, tudo o que deve permear a relação de consumo e saúde”, afirma. Segundo ele, se o consumidor tem acesso à cozinha, ele consegue verificar irregularidades e denunciar. “É estender o poder de fiscalização para a população, o que é super importante”.