Mais um episódio da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Desta feita, César conta um episódio familiar que poderia ser triste, mas, como César é dotado do espírito de Adoniran Barbosa, a graça toma conta do texto.
“Dia de Finados espalha as cinzas da memória sobre nós. ‘As cinzas deles eu quero na Quinta da Boa Vista’, vaticinou mamãe. Nem eu nem meu irmão esboçamos objeção, ai de nós se o fizéssemos.
Era o fim das peripécias de meu pai morto. Ele, que ficara, por três anos, em um jazigo de aluguel, cabia agora em uma pequena urna de MDF e não pesava mais que um saco e meio de cimento branco, com o que se parecia, pelo menos para mim, dolorosamente.
Eu estava sem carro à época. Tivemos que pegar um carro de aplicativo para irmos do São João Batista, Botafogo, para a Quinta da Boa Vista, em São Cristovão.
Sabíamos que iriamos fazer algo que não é lá permitido, pois há locais adequados e pagos para o depósito das cinzas dos entes queridos. Mas quando mamãe põe uma coisa na cabeça, sai de baixo, é para valer.
Ao chegarmos à Quinta da Boa Vista, mamãe escolheu uma árvore, ao redor da qual as cinzas do meu pai foram espalhadas. Simples, simples assim.
Mamãe fez suas orações. Eu mentalizei, meu irmão mentalizou. Não deu bem trinta minutos e estávamos de volta à estrada, a bordo de outro carro de aplicativo.
Deixei-os em casa, no Engenho Novo, e segui viagem no mesmo carro de aplicativo. Coube-me dar cabo da urna de MDF, meu irmão já estava cansado por ter resolvido toda a papelada.
Missão dada, missão cumprida, é assim que penso quando eu estou cheio de mim. Decidido, encerrei a corrida em frente ao cemitério de Ricardo de Albuquerque. Entrei, procurei uma caçamba de lixo, me desfiz da pequena casca que era a urna funerária. Confesso ter-me sentido um tanto estranho, as coisas têm muito simbolismo em momentos assim.
Voltei de mãos vazias, com a certeza de que a vida é curta pra cacete.
No domingo passado, gostaríamos de ter visitado a árvore do papai lá na Quinta da Boa Vista. Combinamos tudo: fizemos sanduíche para o piquenique, sucos variados, lanchinhos; levamos uma que, se não era xadrez, era grande o suficiente, guardanapos etc. e tal. Todo mundo foi dormir cedo para acordar cedo. Não tinha como dar errado com tanto planejamento.
Bem, errado não deu. Mas também não se pode dizer que deu certo. O tempo estava muito instável para irmos os seis (mamãe, meu irmão, meus dois filhos, minha mulher e eu) para um local descoberto como é a Quinta da Boa Vista. E se chovesse canivetes? Para isso não há preparação que dê conta.
Decidimos ir à Reserva do Grajaú, porque, se chovesse, seria muito mais fácil interromper o piquenique e voltar para casa, sãos e salvos. No fim das contas, não deixaria de ser uma homenagem a meu pai, uma vez que o local era bem arborizado.
Em suma, qualquer árvore pode conter as cinzas de meu pai. Qualquer árvore é um descanso para a loucura.
E não é que foi uma delícia? Pelo menos, para os mosquitos, aqueles que costumam picar na altura dos tornozelos. Acho que a mosquitada ficou maluca com tanta carne fresca dando sopa. Meu filho está até agora com um calombo no tornozelo que lhe causa uma coceira daquelas.
E mamãe? Ela ficou tomando sol, sentadinha que nem passarinho em um banco de praça verde, na maior pose. ”Quero tomar sol”, foi o que ela nos disse. É óbvio que, seu desejo seria prontamente atendido e estendido. Tome sol, mamãe, é o que pensei, como se eu lhe ditasse ordens ou sugestões.
Meu irmão, que conhece bem o local, pegou as crianças e as levou para uma grande aventura. Sabe como é que é, as crianças infelizmente têm sido criadas dentro de um apartamento, usando aerossol para matar qualquer inseto. Imagine o espanto delas ao se depararem com formigas de cabeça vermelha, aquelas que parecem alienígenas quando vistas sob lentes de aumento?
Meus filhos, sob o olhar altivo do meu irmão, subiram em pedras, andaram pelo mato, tiraram fotos.
Meu irmão foi mais cuidadoso dessa vez. Da última, meu filho praticamente teve que ser resgatado por alpinistas: ficou agarrado a uma pedra enorme e perigosa. A adrenalina correu tão solta que o garoto nem medo sentiu. Lá foi ele todo feliz e saltitante acompanhar as recomendações do tio sem olhar para trás.
Eu fiquei de levar as crianças a umas dessas caminhadas guiadas qualquer dia desses. É, talvez venha a ser uma boa coisa. Minha mulher não se sentiu lá muito entusiasmada com a ideia. Falta-lhe o espírito aventureiro, talvez. Ou sobra-lhe o respeito pelas picadas de formigas vermelhas.
Quase ia me esquecendo do sagui. Pois é, há muitos saguis no local. Como são espertos! Eles ficam meio que nos vigiando, de butuca, sabe. Ficam observando a gente para ver se nossas cestas de piquenique estão cheias de frutas ou de outros alimentos que lhe despertem o interesse. Se a gente vacilar, eu juro, nos afanam sem o menor peso na consciência, porque sabem que Deus perdoa os que têm fome.
Seu Sagui, se eu tivesse uma banana, eu juro que a daria a você de todo coração. Mas aqui só têm sanduíche, lanchinho e suco. Vacas magras, sagui. E o sagui nem aí, pendurado na árvore como se fosse alpinista.
E tudo estava bem até então, mas estava ventando ou começava a ventar. Mamãe decidiu ficar cansada, suspirou, e quis voltar para casa. Mas não sem antes fazer aquele xixi esperto de praxe. Para nossa sorte, o banheiro estava imaculadamente limpo.
Deixamos minha mãe e meu irmão no Engenho Novo e seguimos o caminho de volta em direção à nossa cidade, a Beija-Flor. Deu tempo de almoçar em casa, para mais tarde ver um pouco do primeiro tempo daquele tempestuoso jogo entre o Vasco e o Ituano.
Por derradeiro, hoje, enquanto escrevia a história, pensei de novo no sagui, que deve ter voltado para o bando de mãos e rabo abanando. Se lhe fosse dada a faculdade de falar, o que ele teria dito sobre aquela manhã de domingo?
Assim como as rosas, os saguis não falam, é certo. Mas, ainda assim, acho que a gente merecia umas belas bananas por termos sido tão ávaros!”
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.