Das medalhas que não inventamos

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Para os artistas que as merecem

A ideia de que um país só existe como tal, se criar uma cultura própria, é um lugar comum tão evidente, que mesmo os ditadores que a têm naturalmente como inimiga, não a prescindem, ainda que, a primeira coisa que eles tratam de dominar é a cultura e, assim como seu sucedâneo imediato, a arte.




Por Enio Squeff e José Genoino

Foi deste modo na Roma antiga, quando os partidários de César mataram Cícero, o genial orador. O poder dos césares só se afirmava, enquanto os poetas e os artistas os louvassem. Durante a própria ditadura no Brasil, houve um momento em que ela se viu obrigada a criar instituições culturais. Não havia como fazer o povo confundir um fuzil com a batuta de um maestro ou o pandeiro de uma escola de samba. Por isso a complicada relação de certos artistas atrelada ao poder paralelo dos homens ricos, que introduziram o mecenato também como modo de disputar o comando dos países. Os artistas que nasceram com a Revolução Francesa usaram os palcos tanto para louvar quanto para contestar o poder. Mas só se cria a grande arte e a grande cultura com plena liberdade.

É uma história para lá de conhecida. O que se ignora é o quanto esse roteiro tem de altos baixos. Há quem defenda que a morte abandonada de Mozart se deveu a sua relativa independência das cortes da época. Foi um dos primeiros compositores a trabalhar por conta própria, numa época em que havia que ter protetores na aristocracia. Ou na Igreja.

No Brasil nunca foi diferente. Quem viveu os primeiros dias do governo Bolsonaro deve se lembrar da perseguição ensaiada contra os artistas, presumivelmente comandada pelo presidente e seu guru, Olavo de Carvalho, “soi disant” filósofo.

É aqui que entra um outro lado da história: as comendas, ou seja, a extensão das medalhas reservada aos generais, aos poderosos de ocasião pode e deve ser estendida aos artistas. Se os militares defendem o poder, com a possibilidade de serem derrotados, os artistas imortalizam qualquer nação. A China foi derrotada e dominada pelos mongóis, mas logo os mongóis cederam à cultura dos mandarins e se integraram ao Império que tinham acabado de conquistar. A cultura chinesa venceu-os.

Tanto quanto às guerras, ou mais ainda os artistas passaram a vencer porque lidam com a cultura.

Esse o dilema das culturas: exaltar o poder é uma coisa. Atacá-lo, zombando do governo, é outra, completamente diferente. A questão chegou a tal ponto que o contrário aconteceu: os artistas, quando de bem com o poder, começaram eles também a ser cortejados. Foi quando nasceram os troféus, as medalhas. Mas aí a coisa se complicou pelo menos para os brasileiros. Aceitamos e louvamos os atletas do nosso clube de futebol que ganham medalhas. Mas acompanhamos Beethoven quando dizia (sobre Goethe, que era monarquista), que deveríamos desconfiar dos poetas: gostavam demais das lantejoulas da corte. Foi a forma transversa em que Beethoven se referiu às comendas de Goethe.

Não se sabe, se é daí ou de episódios semelhantes que nasceu a desconfiança que sempre tivemos das medalhas e comendas. Aceitamo-las sob a forma de Prêmios entregues por outros países e outras instituições como: o Nobel, as Medalhas ditas do “pacificador” e daí por diante. Esses que não honorificam artistas, o governo os distribui à vontade. Mas justamente aos que notabilizam a nossa cultura – a criatividade e o talento são, solenemente, ignorados.

Digamos que os maiores merecedores delas, por expressarem essa coisa tão especial que é a nossa cultura, estes são sempre ignorados. Há o preconceito, é certo. Mas, com isso, não mostramos ao mundo, quem são nossos artistas, nossos escritores, nossos poetas, nossos músicos, nossos pintores e o quanto dimensionamos as artes.

É a falha maior de nossa cultura. Não a honramos com essas coisas que nos parecem bobas como medalhas, comendas, diplomas. O espaço dos jornais está sempre aberto aos Nobéis, à Legion d’honneur, aos Oscars. Aos nossos artistas, porém, não lhes devotamos nosso próprio respeito ao que nos fazem termos um mínimo de reconhecimento lá fora.

Não é uma questão menor. Todos nos rejubilamos quando Chico Buarque de Holanda foi homenageado por Portugal com o Prêmio Camões. Deveríamos nos acostumar a nos regozijar-se fosse o caso de dar uma suposta “Medalha ao Mérito Artístico” a outros tantos talentos, inclusive a alguns mortos recentes como o violoncelista Antônio Meneses e os pianistas Roberto Szidon, e Nelson Freire, para citar alguns. E aqui entra uma questão talvez muito maior que a simples discussão sobre comendas, medalhas de mérito artístico e semelhantes em todas as áreas, incluindo-se o cinema, a dança e por aí afora.

Referimo-nos ao Ministério da Cultura, a quem, em teoria, este assunto está afeto. De um governo que prima, na teoria e na prática, em se diferenciar do obscurantismo bolsonarista, o Ministério da Cultura anda constrangedoramente escondido. São raríssimos os eventos em que o Ministério tem alguma coisa a dizer, ou porque aparentemente não tem mesmo nada a ver com nada, ou porque se considera uma voz menos audível e influente dentro do governo. No primeiro caso, é uma falta grave: o governo Lula não tem uma marca cultural visível, renovadora, o que explica também a sua impopularidade. No segundo, a ministra parece não querer holofotes, quando deveria pelo menos fazer que o Brasil fosse iluminado por seus artistas – os mais visíveis na história de um país.

É aí que entra a tal “Medalha do Mérito Artístico” ou coisa que o valha. Seria lamentável ou cafona que Caetano Veloso incluísse em sua biografia que foi premiado pelo governo Lula – ou por outros que lhe seguirem – por algo parecido com uma medalha de mérito por seu talento? Há pouco um menino de Parelheiros, chamado Guido Sant’Anna, venceu a competição “Fritz Kreisler” em Viena, um dos mais, senão o mais cobiçado, por jovens violinistas do mundo inteiro. Não li nem ao menos um telegrama de louvação do governo por um jovem que preenche todos os requisitos que explicam o trabalho mais que louvável do governo Lula em ser para todos, com seus programas de cotas para negros, de incentivo aos pobres para que estudem, cursem universidades e se distingam. Guido Sant’Anna é o caso. O mais insólito em relação a Guido Sant’Anna, porém, é que não estudou no exterior, mas com uma professora brasileira, a violinista Elisa Fukuda.

Já que o Ministério da Cultura não se mexeu, seria demais esperar dele uma medalha ou coisa que o valha para um talento que todos os países civilizados almejariam ter?

— 

José Genoino, ex-deputado federal constituinte e ex-presidente do PT
Enio Squeff, artista plástico


Fritz Kreisler Violin Competition 2022


1st Prize | Winners announced at Fritz kreisler International 2022 violincompetitionYoutube, FINALE | 1st Prize – Guido Sant’Anna e Silva – Fritz Kreisler Violin Competition

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