De Berlim à Síria: como o chimarrão se tornou uma bebida global

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Chimarrão nunca foi só coisa de gaúcho. Símbolo cultural do sul e centro-oeste e ícone de três países vizinhos, a erva-mate tem uma legião crescente de fãs

Por Felipe van Deursen, compartilhado da Revista Galileu




na foto: O chimarrão, bebida símbolo do sul e centro-oeste, é feito pela infusão da erva-mate em água quente — Foto: Unsplash

A queda do ditador sírio Bashar al-Assad, em dezembro de 2024, fez a alegria de multidões dentro e fora do país. Mas deixou muita gente apreensiva. Não só por causa do destino político incerto da Síria, de seus novos líderes ou dos múltiplos interesses de nações vizinhas e de grandes potências. A abrupta derrubada da família que comandou o país por mais de 50 anos fez com que os produtores de erva-mate da Argentina ficassem inquietos. Afinal, com esse clima de incerteza, como manter o comércio internacional e garantir o mate de todo dia do povo sírio?

Nem só café e chá estimulam o cotidiano dos sírios: há mais de um século, eles são fissurados na bebida cafeinada típica do Cone Sul. E esse apreço representa uma lenta, discreta e curiosa globalização da erva-mate. Um produto que chegou a Damasco, Berlim e Pequim, em uma saga que começou há 500 anos.

Herança guarani

A erva-mate é uma árvore nativa da América do Sul subtropical. As primeiras pessoas que descobriram que suas folhas são ótimas para fazer infusões foram os guaranis que viviam nas bacias dos rios Paraná, Paraguai e Uruguai. Para eles, as folhas eram presentes divinos, mas que serviam também no dia a dia, inclusive como moeda.

O consumo era um ritual social. Para beber, os guaranis usavam uma cabaça e um canudo feito de taquara, bambu nativo do continente. Ou seja, os ancestrais da cuia e da bomba, os utensílios típicos do chimarrão, também já estavam presentes. Os charruas, no Uruguai, e os tupis, no Brasil, também consumiam erva-mate, porém mascando as folhas. Mas foi a forma de infusão dos guaranis que se difundiu. Para esse povo, a erva-mate era tão importante que a palavra para ela, “ka’a”, significa, simplesmente, “planta”. Quando os conquistadores espanhois chegaram, a traduziram para “yerba”.

Indígenas guaranis foram os primeiros a infusionar a erva- mate — Foto: Getty Images
Indígenas guaranis foram os primeiros a infusionar a erva- mate — Foto: Getty Images

nome científico também serve como certidão de nascimento, no caso: Ilex paraguariensis. No Paraguai, ela é tão importante que foi reconhecida pela Unesco. As práticas e conhecimentos tradicionais da cultura pohã ñana (“plantas medicinais”, em guarani) se tornaram, em 2020, a primeira contribuição paraguaia à lista de patrimônios imateriais da humanidade. O tereré (ou tererê), uma infusão de erva-mate com água fria e ervas medicinais, representa, segundo a Unesco, uma prática que promove a coesão social e que contribui para a conscientização da sociedade sobre o rico legado cultural e botânico guarani.

colonização espanhola ajudou a espalhar pela América do Sul o costume dessas infusões de erva-mate em água quente ou fria (que se adaptaram a cada região de acordo com o clima). Segundo a antropóloga americana Christine Folch, no livro The Book of Yerba Mate (“O livro da erva-mate”, inédito no Brasil), a planta entrou no dinâmico mercado em torno das minas de prata da atual Bolívia, em que reforçou sua antiga vocação indígena de, também, ser usada como moeda. Em Lima, capital do Vice-Reino do Peru e então a cidade espanhola mais importante da América do Sul, a planta ficou tão popular que ganhou seu nome completo. A palavra “mate” é uma contribuição direta do quíchua, o idioma andino falado no Império Inca e hoje uma das línguas oficiais do Peru: “mati”, em quíchua, significa “xícara”, “taça”.

“Mati”, em quíchua, significa “taça” — Foto: Getty Images
“Mati”, em quíchua, significa “taça” — Foto: Getty Images

No Brasil, o chimarrão e o tereré se difundiram de maneira semelhante. Sem se distanciar das regiões nativas da erva-mate e dos guaranis, concentraram-se no sul e, em menor escala, no centro-oeste – as duas regiões, no século 16, no contexto do Tratado de Tordesilhas, estavam dentro dos domínios espanhois.

No sul, as ervateiras eram bastante comuns já no século 19. O botânico Auguste de Saint-Hilaire, que fez célebres narrativas de viagem no Brasil dos anos 1810 e 1820, escreveu que, diversas vezes, recebeu convites para tomar um mate quando estava na então capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul. “A primeira vez que provei essa bebida, achei-a muito sem graça, mas logo me acostumei a ela, e atualmente tomo vários mates, de enfiada, com prazer, até mesmo sem açúcar. Acho no mate um ligeiro perfume, misto de amargor, que não é desagradável”, registrou, em viagem ao Rio Grande do Sul. “Toma-se ao levantar da cama e, depois, várias vezes ao dia. A chaleira de água quente está sempre ao fogo, e logo que um estranho entre na casa se lhe oferece o mate”, anotou. Foi Saint-Hilaire que, aliás, identificou e catalogou a erva-mate.

Essa falta de higiene e o amargor da beberagem poderiam não ter agradado ao gosto europeu, mas o chimarrão agora faz parte dos costumes teuto-brasileiros

— Jean Roche, historiador francês, estranhou o habito de compartilhar canudo e cuia

Em 1950, o historiador francês Jean Roche, que escreveu uma obra de referência sobre a colonização alemã no Rio Grande do Sul, anotou 41 indústrias administradas por descendentes de imigrantes somente em Erechim, no norte do estado. Ele aproveitou para fazer um comentário negativo: “independente de qualquer festividade, numerosos colonos adotaram o chimarrão, a infusão de erva-mate tomada na cuia e chupada com o pequeno canudo de prata (bomba), que passa de boca em boca: essa falta de higiene como o amargor da beberagem poderiam não ter agradado ao gosto europeu, mas o chimarrão faz agora parte dos costumes teuto-brasileiros”.

Não foi só a suposta falta de higiene que desagradou aos europeus. No século 17, quando os jesuítas chegaram ao Paraguai, eles baniram o consumo de mate, acreditando se tratar de um hábito danoso à saúde. O argentino Jerónimo Lagier, diretor do Instituto Nacional de Erva-Mate, escreveu em La Aventura de La Yerba Mate (inédito no Brasil) que o governo de Assunção, em 1611, punia com cem chibatadas aqueles pegos transportando a erva. Cerca de 20 anos depois, o banimento caiu, porque os jesuítas viram que a bebida não era alucinógena. Pelo contrário: camuflava a sede e a fome com sua dose de energia, providenciada pela cafeína. As vantagens econômicas do cultivo logo ficaram claras, e a domesticação ganhou impulso.

Chegada a Berlim

As dimensões continentais do Império Espanhol levaram a erva-mate para cada vez mais longe. Nos séculos 19 e 20, os fluxos de imigrantes apresentaram a bebida a lugares antes inimagináveis.

Na década de 1920, uma fabricante cubana criou a Materva, um refrigerante à base de erva-mate que se tornou popular. Após a Revolução Cubana (1959), a bebida virou um símbolo dessa antiga Cuba para os imigrantes e refugiados do país na Flórida. Nos anos 1960, uma empresa de Miami assumiu a produção. Hoje, ela é um querido refri regional, como as tubaínas espalhadas pelo Brasil.

Na mesma época em que a Materva despontava em Cuba, outra bebida à base de erva-mate surgia em um cenário improvável, a Baviera. Batizada de Sekt-Bronte, ela foi, até o fim do século passado, um obscuro refrigerante local. Mas, como tantas e tantas coisas na Alemanha dos anos 1990, a Sekt-Bronte também se transformou. Rebatizada de Club-Mate, aos poucos penetrou em duas cenas culturais que floresceram na época, a informática e a música eletrônica. Fossem hackers virando a noite ou clubbers procurando a próxima festa, a erva-mate conquistou novos públicos.

Reza a lenda que um homem de Prenzlauer Berg, em Berlim, passava vendendo bebidas em um carrinho na rua. Na época, pouco após a Queda do Muro de Berlim, 1989, conseguir licença para o comércio de álcool era ainda muito difícil, explica o site especializado em música eletrônica EDM Maniac. Com o tempo, o sujeito cresceu e virou a maior fonte de bebidas para os baladeiros. Certo dia, um cliente bávaro pediu uma bebida de sua região, que acabou caindo no gosto das pessoas. Era o Club-Mate, a desconhecida garrafinha cafeinada da Baviera. “Os ravers misturavam a erva-mate com seu álcool de preferência e até hoje ela é uma das bebidas mais populares da cena techno alemã”, segundo o portal.

Nos últimos anos, a queda do consumo de álcool, especialmente entre os mais jovens, é uma oportunidade para os produtores desses “tererés em lata”. Algumas marcas estão apostando mais no mercado da noite ao promover os efeitos benéficos da erva-mate. Quando consumida lentamente, ela não tem os picos e efeitos-rebote que café ou energéticos podem provocar. Esse seria um motivo para o aumento da popularidade dessas bebidas na China, onde há muita gente virando a noite em festas ou na frente do computador e o consumo de drogas é menor do que no ocidente.

Conheça os termos

O historiador Marcos Gerhardt, em sua tese de doutorado na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), explica que a palavra em português para a bebida também reflete a mistura do contato entre indígenas e europeus. Antigamente, falava-se “mate-chimarrão”. Chimarrão era uma forma de consumir mate – a maneira original, amarga, não adoçada. Vem do espanhol “cimarrón”, termo usado para aquilo que retornou ao estado selvagem, sejam cães ou gado não domesticados ou bebidas que também voltaram à sua “forma natural”, ou seja, sem açúcar. Já “tereré” vem do guarani. É uma onomatopeia referente ao ruído do último gole ao esvaziar a guampa.

Guampa, por sua vez, é o chifre usado como copo de tereré. É diferente da cuia do chimarrão. “Cuia” é uma palavra que vem do tupi para o fruto da cuieira. Depois de maduro, esse fruto serve para a produção de recipientes, embora a matéria-prima mais comum para aquele usado para se tomar chimarrão seja o porongo, fruto de uma árvore originária da África e que tem diversos usos, como a fabricação de objetos decorativos, cachimbos, garrafas e berimbaus.

Cuia de chimarrão costuma ser feita com porongo, planta “prima” da cabaça — Foto: Getty Images
Cuia de chimarrão costuma ser feita com porongo, planta “prima” da cabaça — Foto: Getty Images

Em Damasco

O entretenimento e a socialização também foram a ponte que levou a erva-mate ao Oriente Médio, mais especificamente à região do Levante, no Mediterrâneo. Com a desintegração do Império Turco-Otomano, o Brasil e os vizinhos sul-americanos receberam grandes levas de imigrantes sírios e libaneses, a partir do fim do século 19. Aqui, eles conheceram a cultura do mate e se encantaram com o conceito de bebida para ser compartilhada.

Após a Primeira Guerra Mundial, em 1918, muitos voltaram a seus países de origem, levando o costume, apresentando-o a parentes e vizinhos e o adaptando a seu contexto. Na Síria, hoje, a erva-mate já constitui uma tradição própria, parte da identidade nacional. A socialização é a mesma do ritual sul-americano, mas o único item compartilhado na roda é a água quente. Em vez da cuia passando de mão em mão, cada um bebe em seu próprio recipiente, um pequeno copo de vidro, madeira ou cerâmica. Além de chimarrão, o país também consome a erva na forma de tereré ou em sachês e cápsulas de chá-mate.

Na década passada, a guerra civil síria criou um mar de refugiados internos, que acabaram levando o costume de regiões já familiarizadas com o mate para outras que o conheciam pouco. Segundo o centro de pesquisas econômicas francês Cepii, em 2022, a Síria ultrapassou o Uruguai, e virou o maior importador de erva-mate do mundo, chegando a US$ 63,9 milhões. Por isso os produtores na Argentina, que destinam 80% das suas exportações ao país arabe, ficaram preocupados com a queda de Assad. Os mais otimistas não veem razão nisso, porque quando estourou a Primavera Árabe, com a guerra na sequência, em 2011, o consumo de mate na Síria não caiu.

Os produtores brasileiros também estão aproveitando. Entre janeiro e agosto de 2024, o volume de comércio saltou de US$ 441 mil para US$ 5,2 milhões em relação ao mesmo período em 2023, segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços. O Brasil é o maior exportador do mundo, com US$ 97 milhões, mas os sírios preferem a erva à maneira argentina. A moagem é menos fina que a brasileira, então há mais pedacinhos maiores de folhas e menos pó. Além disso, tem o envelhecimento. No Brasil, a erva-mate mais consumida é de um verde vivo, fresca, enquanto na Argentina ela descansa pelo menos um ano antes de ser triturada e embalada, resultando em um chimarrão ainda mais amargo. Por isso, assim como em outras bebidas e comidas comuns a povos distintos, existe um embate cultural quanto à receita “correta” do chimarrão.

É uma experiência multissensorial, porque você toma, você escuta os outros tomando e você sente enquanto ele [o chimarrão] passa de mão em mão na roda

— Cristine Folch, em trecho do livro “The Book of Yerba Mate

Se há diferenças no preparo, na socialização o mate une os sul-americanos. Para Folch, uma das coisas mais bonitas do ritual é sua capacidade de criar intimidade. Os mais tradicionais giram a roda do chimarrão no sentido anti-horário, passando sempre com a mão direita. “É uma experiência multissensorial, porque você toma, você escuta os outros tomando e você o sente enquanto ele passa de mão em mão na roda. Compartilhar uma cuia pode violar muitas noções de higiene da América do Norte. As pessoas passam cigarros de uma para a outra, mas não colocam a boca na mesma bomba”, ironiza.

A campanha vitoriosa da Argentina na Copa de 2022 enalteceu ainda mais a vocação global da erva-mate. O elenco desembarcou no Catar com 240 kg de erva-mate. O produto, porém, era brasileiro, feito no Rio Grande do Sul para uma marca uruguaia, a preferida de Lionel Messi. O preparo uruguaio é um meio-termo entre o argentino e o gaúcho: a erva não é tão fina como no Brasil, tem menos palitos que a argentina e também passa por envelhecimento. Ao se mudar para os Estados Unidos, Messi divulgou ainda mais a cultura do mate. Em novembro de 2024, o craque anunciou uma linha especial de cuias e bombas em parceria com a fabricante Stanley. Os puristas chiaram, porque se a etiqueta do chimarrão rege que cada pessoa toma uma cuia inteira antes de passar ao vizinho, um mate em um copo térmico seria um entrave para a roda seguir adiante. Messi, quem diria, estragou um “esporte” coletivo.

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