O cinema argentino vem conseguindo manter com a galhardia a tradição de apresentar filmes muito bem-produzidos, com histórias plurais e, sobretudo, um elenco primoroso, com destaque para Ricardo Darín, certamente o ator mais reconhecido da Argentina e celebrado mesmo entre os brasileiros.
POR GIANCARLO GALDINO, compartilhado da Revista Bula
“Abutres” encaixa-se tanto numa faixa como na outra, com Darín encarnando, como sói acontecer, um papel acentuadamente dramático, profundamente melancólico, sem jamais pesar a mão mais do que o próprio enredo aconselha. Dando início à parceria que o iria consagrar, Pablo Trapero extrai de seu protagonista momentos de diabólico lirismo — façanha que replica com menos êxito, mas ainda assim com brilhantismo em “Elefante Branco ” —, chegando ao extremo do romance impetuoso destacado em seu roteiro, escrito com Alejandro Fadel, Martín Máuregui e Santiago Mitre. Nesse ponto, entra uma outra variável fundamental nessa equação, permeando todo o filme e servindo de bússola ao espectador: quando ela aparece, a tensão é certa.
As cenas em preto e branco de um acidente de carro não tratam de desfazer qualquer dúvida: a barbárie, o lado mais torpe do homem vem em ondas de imagens assumidamente perturbadoras, em que as aves de rapina de uma Buenos Aires nada glamorosa assenhoram-se da noite e buscam seu repasto, argumento de que Dan Gilroy também se vale no quase homônimo “O Abutre” (2014). Sosa, ex-advogado banido de Darín, personifica essa ideia, sobrevivendo de seus périplos pela madrugada atrás de vítimas de colisões e toda sorte de tragédias na intenção de oferecer às vítimas ou a seus parentes serviços funerários e apólices de seguro de vida que nem sempre honram o que está escrito. Pouco depois, Sosa aparece levando uma coça de tipos suspeitos que enterravam um conhecido. Esses recortes do submundo portenho ficam bem na pele de um homem bonito, porém vários tons abaixo do ordinário, até que encontra sua alma gêmea. Luján Olivera, médica especialista em primeiros socorros a feridos graves numa megalópole com uma larguíssima demanda para a atividade, atravessa o caminho de Sosa e a partir de então Martina Gusmán alia-se a Darín no firme propósito de, a um só tempo, confundir o juízo de quem assiste com uma interpretação que pende ora para a suavidade, ora para a neurastenia, que partilha com o anti-herói de “Abutres”.
No princípio do terceiro ato, Trapero se imbui de vez da potente essência noir de seu longa e arrisca-se a denunciar o modus operandi dos negócios com que Sosa ganha a vida. Um golpe de Casal, o dissimulado mafioso de José Luis Arias, dá azo a uma tentativa de extorsão do abutre, que se traduz em mais sangue, em sua vida e na de Luján. Sem condescendências de nenhuma espécie, este trabalho do diretor é outro dos filmes realizados aquém do rio da Prata, merecidamente famosos por suas tramas originais, cheias de guinadas narrativas, e, sobretudo, indiferentes a patrulhas ideológicas. Nesse particular, a diferença entre seus pares do Brasil salta aos olhos.
Filme: Abutres
Direção: Pablo Trapero
Ano: 2010
Gêneros: Crime/Thriller
Nota: 8/10