De Catolé do Rocha para o mundo: a playlist da vida de Chico César

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publicado em Reverb – 

Não foi só quando ouviu Prince e Salif Keitaque Chico César dançou. A vida do cantor paraibano de Catolé do Rocha é um atlas de referências musicais que contam sua história para muito além das inspirações citadas no hit noventista “À Primeira Vista”. Mais novo de sete filhos, dentro de casa aprendeu desde cedo a rezar o terço cantando com a mãe, uma mulher católica que entoava benditos da igreja a todo momento. A família vivia na zona rural (em um sítio chamado “Rancho do Povo”) e música era o que não faltava nas festas da roça onde o pai de Chico trabalhava — e com frequência cantava para o rebanho. 

Mesmo estando sempre rodeado por sons e melodias, a aptidão para a música (ou, melhor dizendo, o “chamamento”, como ele mesmo definiu ao Reverb) não floresceu no seio familiar. Um novo mundo se abriu para Chico quando, com apenas oito anos, ele começou a trabalhar para uma loja de discos cuja inspiração vinha realmente de outro universo.

“O nome da loja era Lunik, nome da primeira nave russa que sobrevoou a órbita lunar e a mesma que inspirou Gilberto Gil a compor ‘Lunik 9’. Eu vendia discos e livros nas casas das pessoas, nos estabelecimentos comerciais, em bancos. Às vezes eu era também o cobrador de quem devia”, lembra o artista. Até os 15 anos de idade, ele passou seus dias mergulhado entre vinis e compactos. Discos que lhe apresentavam a raiz da música nordestina, com Marinês e Sua Gente, Luiz Gonzaga, a Banda de Pífanos de Caruaru e Trio Nordestino, passando por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Luiz Melodia, Erasmo, Roberto, Wanderléa, até chegar emKraftwerk. “Nós vendíamos discos de Kraftwerk em Catolé do Rocha. Era uma banda de música eletrônica alemã, que, na época, nem se chamava música eletrônica. Se chamava rock industrial”, diz.




Um dia, enquanto caminhava pelas ruas de Catolé com os álbuns debaixo do braço, o garoto de 12 anos se descobriu compositor ao escrever sua primeira música, “sem querer”. “Estava andando e comecei a cantar um samba. Percebi que aquele samba não era de ninguém que eu conhecia. Não era de Dona Ivone Lara, nem dePaulinho da Viola; não era de Jorginho do Império, não era de Wando. Quando cheguei na loja perguntei se alguém sabia de quem era aquela música. E me responderam: ‘é sua!'”. Da inspiração surpresa, saiu “Quando Chega o Carnaval”.

Na viagem da Lunik, Chico se aproximou ainda da música negra americana — Donna Summer, Diana Ross, Ray Charles — e, em seus fones, ouviu Beatles e Rolling Stones pela primeira vez. “Era uma loja encravada no sertão da Paraíba, mas que tinha todas essas coisas. Ali me deu o universo pop logo cedo. Eu aprendi a não hierarquizar Mick Jagger e Luiz Gonzaga. Para mim, eram todos iguais”.

Era uma loja de discos encravada no sertão da Paraíba, que me deu o universo pop logo cedo. Eu aprendi a não hierarquizar Mick Jagger e Luiz Gonzaga. Para mim, eram todos iguais.

Havia muita liberdade para se buscar referências dentro da loja. A aproximação com ocarnaval se deu naquele mesmo universo. Chico foi dominado pelo gingado do forró e pelas harmonias do frevo. Mais tarde, o amor pela festa do povo levaria Chico a fazer um álbum que tivesse o ritmo pernambucano como tema, “Francisco Forró y Frevo”. “O carnaval é a festa do homem urbano e do indivíduo. É uma explosão de alegria em que as regras são relativizadas”, define, inebriado pela paixão do folião-artista.

Foi também na Lunik que Chico percebeu que os clientes tinham uma ligação afetiva e subjetiva com os artistas. “Eles iam principalmente no sábado e pediam para olhar a capa, pegavam um dinheiro contado que era para fazer a feira e mais um pouco para comprar um compacto quando não dava para comprar o LP. O consumo cultural mostrou para mim que aquilo de certa forma poderia ser um meio de vida. Eu queria ser o cara que estava na capa do disco”.

A música levou a vida de Chico adiante. Com os amigos que conheceu em uma companhia de teatro, formou o Grupo Ferradura. “Começamos a compor com os cinco acordes que a gente sabia e influenciados pela Banda de Pau e Corda. Tinha uma coisa meio psicodélica no que a gente fazia. Líamos sobre Led Zeppelin e Pink Floyd na ‘Revista Pop’ e acompanhávamos a cena internacional. Nosso grupo era influenciado por essa música do rock experimental”, conta.

Duas mudanças mexeram com a vida do cantor. A primeira, para João Pessoa, para onde se foi no último ano de colégio. Chico entrou para a universidade aos 17 anos, quando começou o curso de Comunicação Social na Universidade Federal da Paraíba. Ali, se aproximou do som do grupo Jaguaribe Carne. “Eles misturavam música nordestina com indiana, com o Paquistão, com poesia pornô. Era uma caldeira de liberdade muito grande. Aquilo para alguém que estava chegando do sertão com a idade que eu tinha mexeu muito com a minha cabeça”.

A liberdade exalada pelo Jaguaribe fez Chico transcender. Em 1985, ao chegar em São Paulo, foi, aos poucos tentando se encontrar. O caminho na música ainda não era prioridade. Ele se dividia entre o emprego como servidor público e o de jornalista. Até que os entremeios políticos do país o fizeram, de certa forma, um favor. “Muita gente foi demitida por conta do Plano Collor e eu fiquei feliz porque já estava em São Paulo há sete anos e achei que era hora de batalhar minha vida.”

A batalha a que se refere era o caminho na música. Zeca Baleiro, outra referência na cena nacional, foi fundamental para que a carreira de Chico seguisse o caminho que o transformou. Os dois foram apresentados por um amigo em comum. “O Celso Borges, poeta, disse que nós dois éramos semelhantes porque vínhamos do Nordeste, mas tínhamos uma sonoridade para além do regionalismo. Quando Zeca chegou a São Paulo, soube que eu tinha um amplificador e me pediu emprestado. Combinamos de nos encontrar na escadaria da TV Gazeta sem nunca termos nos visto. Nem em foto”, relembra. “Aí veio aquele carinha parecido com o Ednardo jovem. Um bonezinho que escondia uma calvície que depois se revelou e eu falei ‘só pode ser aquele cara'”, brinca sobre o amigo.

Os dois iniciaram uma amizade imediata. Do laço que os uniu saíram preciosidades musicais como “Pedra de Responsa”, música que Chico fez de presente para Zeca. “Era aniversário dele, eu acordei pensando que não tinha dinheiro para comprar um presente e decidi escrever uma música. A convivência nos influenciou mutuamente.”

Entre os ídolos que guarda com a mais profunda admiração, o paraibano destaca Luiz Gonzaga, João do Valle e Jackson do Pandeiro. “São homens nascidos no interior, de estados periféricos nordestinos. Homens negros, pobres e que conseguiram levar sua arte para o mundo”, afirma. Por outro lado, a presença transformadora deSecos & Molhados também o faz perceber a importância do grupo para sua própria renovação pessoal. “O surgimento deles é muito abrasivo e arrasador. Era uma música para todos. Uma explosão de irreverência democrática. Sou muito grato a João Ricardo, Ney Matogrosso e Gérson Conrad. Hoje as pessoas só pensam em dar ‘close’. Sem os Secos e Molhados nada disso seria possível”.

Da nova geração de músicos, Chico monta uma colcha de influências modernas que mostram a versatilidade de seu gosto pela música. De São Paulo, ouve bastante o trabalho do compositor Dani Black (“De quem eu fui baby sitter quando ele era criança. Eu tocava minhas músicas para ele como entretenimento”). Da Paraíba, admira o grupo Seu Pereira e o Coletivo 401. De Pernambuco, indica Flaira Ferro(“Uma artista completa. Bailarina, compositora, pensadora do Brasil a partir de uma perspectiva nordestina e da mulher, o que eu acho mais renovador. Já tivemos muitas renovações que vieram dos homens, mas agora é a vez das mulheres”).

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