De Miguel Torga a Ulisses Capozzoli, visões sobre a natureza e o homem

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Fomos brindados por dois textos maravilhosos, no Facebook. O primeiro, via o amigo João Lopes, traz poucas, mas profundas linhas do escritor, poeta português Miguel Torga.

Já o segundo texto é do amigo, grande jornalista Ulisses Capozzoli.




Ao ler os dois, vimos que tinham similaridades, portanto, ousamos publicá-los aqui.

 

Do escritor português,  poeta, socialista Miguel Torga, via João Lopes:

“O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso da natureza.
Socalcos que são passadas de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor, pintor ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis da visão.
Um universo virginal, como se tivesse acabado de nascer, e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o rio se atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora pasmado lá no fundo a reflectir o seu próprio assombro.
Um poema geológico. A beleza absoluta.
Diário XII”. S. Leonardo de Galafura, 8 de Abril de 1977.
Por Ulisses Capozzoli, jornalista
E se cairmos no sono?
O vale é uma bola de papel amassado, de solo, rocha, silte e vegetação, onde vacas com olhar vagamente filosófico ruminam um composto de pastagem e tempo. O caminhão verdureiro, um veloz besouro assustado, deixa para trás uma cauda amarelo-esbranquiçada que demora em assentar pelas chuvas mais raras do fim do verão.
O solo ressecado/quebradiço, os pneus do caminhão-besouro que transporta verduras, em contato com a superfície seca do solo, estão na origem da nuvem-cauda que se forma atrás dele.
Não só isso. Cada uma das engrenagens que movimentam o caminhão-besouro assustado se desgastam e liberam limalha para formar a nuvem. Partículas do sistema de frenagem, exaustão do motor, tudo, associado para formar a nuvem que resiste em posar como uma garça rebelde.
A segunda lei da termodinâmica um tesouro que a maior parte dos olhos não vê: a desagregação contínua da fruição dos seres orgânicos/inorgânicos.
Do Universo inteiro, contrapondo-se à primeira lei: a organização, a vida que pulsa no vale em forma de papel amassado e vacas que ruminam com indiferença a mistura de pastagem e tempo.
A vida que, na Terra, leva, à cada segundo, à morte do Sol. Um sol ameno que, agora, nasce cada dia mais inclinado ao norte. Ainda que chegue sempre do leste, desde que a Terra se aglutinou em torno dele.
O vale não existiu por esse tempo todo. É relativamente jovem ainda que, comparado à duração de uma vida humana, possa ser chamado de uma pequena eternidade.
Aglomerações humanas, povoados, cidades, cidadezinhas, lugarejos que não cresceram como um planta carente de nutrição, se espalham em todas as direções, invisíveis pela forma do vale que sugere uma nave espacial, deslizando em meio às estrelas com o passo silencioso de um jaguar, uma onça, um gato do mato, cada um desses felinos astutos.
Cada uma dessas aglomerações humanas curvadas sobre si, sob um capote pesado e máscaras sanitárias, recursos medievais, para escapar da peste que flutua como a nuvem branco-amarelada do caminhão besouro-assustado. O mundo muda e é sempre o mesmo, um de seus muitos paradoxos.
No vale, os fantasmas podem estar do outro lado do rio que corre como um fio de prata liquefeito pelo Sol que se inclina para o norte. E dá às águas a insólita aparência metálica.
Na margem oposta do rio, vigio esses fantasmas autorizadas pelo obscurantismo, mas sou, como cada um de nós, impotente.
Eles podem chegar num momento em que, cansado pela vigilância, eu caia no sono. E estarei/estaremos sem nenhuma defesa.
Foto da capa do blog publicada na postagem do Facebook de João Lopes, com o texto de Miguel Torga

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