Por Valter Carvalho e Fábio Kerche, publicado em Carta Capital –
A proposta nasce com o carimbo do casuísmo. Lembra a manobra contra João Goulart em 1961 e a história se repete como farsa e tragédia
A proposta de parlamentarismo que mais uma vez volta ao debate no Brasil segue um roteiro conhecido. A exemplo de 1961, vem em um momento de crise política e sérios abalos no consenso democrático. Proposto por um governo instalado após um processo de impeachment de legalidade duvidosa, que sofre sérios déficits de legitimidade e baixa avaliação, soa como casuísmo e subversão das regras do jogo.
Ao que parece, parcela dos atores políticos inseguros quanto ao resultado das eleições de 2018 buscam alternativas para garantir agendas conservadoras que não sobreviveriam à vitória de candidatos progressistas, como o ex-presidente Lula.
A crise de 1961 pode iluminar o debate atual em torno da mudança do sistema de governo. O parlamentarismo implantado naquele momento foi marcado por disfuncionalidades, algumas geradas por descuido ou pressa na instalação do sistema de governo, outras, por mera desvirtuação do modelo, por exigência dos que queriam sacrificar a estabilidade das instituições em nome de interesses conjunturais.
Ao renunciar à presidência da República, Jânio Quadros aprofundou a crise institucional do período. Seu sucessor constitucional, João Goulart, era um velho desafeto dos militares e de parte da elite empresarial. O veto dos militares ao vice foi devolvido ao Congresso, que deveria impedir a sua posse de forma “legal”, espécie de golpe parlamentar que eximia as Forças Armadas de responsabilidade.
A solução encontrada pelo Congresso foi lançar mão de um estratagema aparentemente ainda no campo democrático: o parlamentarismo e o consequente esvaziamento dos poderes do presidente. Nesse sentido, como ocorre agora, o parlamentarismo, que tem virtudes e defeitos como todos os sistemas de governo, foi o jeitinho encontrado para amputar os poderes de um presidente indesejável, acusado de alinhamento com comunismo. Em outros termos, a saída parlamentarista foi puro e simples casuísmo, rechaçado pela população em plebiscito pouco tempo depois.
Ao instalar o parlamentarismo, os militares impuseram uma condição que tornava difícil o bom funcionamento do sistema. Trataram de impedir que o presidente exercesse a prerrogativa de dissolver o Congresso em caso de perda de confiança. Com isso, o mandato de todos os parlamentares estavam garantidos até o fim da legislatura. Ora, sem essa prerrogativa, uma das virtudes do parlamentarismo, a solução de crises de forma rápida e menos traumática, enfraquece.
O primeiro-ministro tinha prerrogativas de propor projeto de leis, orçamento federal, intervenção federal e decretar estado de sítio. O presidente, por sua vez, manteve alguns poderes importantes, como nomear os ministros, dispor de cargos públicos federais e vetar projetos de leis.
Por seu turno, todos os atos do presidente deveriam ter a chancela do primeiro-ministro e do ministro titular da pasta a qual uma decisão presidencial incidisse. Era uma clara tentativa de obstruir a capacidade decisória do presidente, com sérias implicações para a eficácia governamental.
No quadro atual, imaginemos a situação plausível de um presidente com alguns poderes, a exemplo de 1961, mas cuja ideologia está em assimetria com a do primeiro-ministro ou se afaste muito da mediana do Congresso. A probabilidade de uma crise política é bastante razoável.
O problema não é simplesmente o sistema de governo, mas, entre outros, a falta de consenso e defesa da estabilidade das instituições. A crise do período não foi sanada pelo parlamentarismo porque dizia respeito ao próprio pacto democrático. Era o consenso democrático, que passa pela necessidade do respeito às regras do jogo, pela institucionalização da incerteza, que estava em crise.
Outros problemas podem decorrer dessa mudança abrupta e pouco discutida de sistema de governo, como assistimos agora. Pelo que tem sido ventilado, a proposta governista prevê que o presidente seja eleito juntamente com parlamento. Nada mais arriscado do que a eleição do chefe de Estado nessas condições.
O eleitor pode não ter a devida percepção de que seu voto elege o primeiro-ministro, mas o presidente. Enquanto este sai consagrado por maciça votação popular, de amplitude nacional, aquele pode parecer ser fruto de tramas palacianas. Em uma tradição presidencial forte como a nossa, essa solução, se implantada, tem grande chance de aprofundar a crise de governabilidade e sofrer de desconfiança dos eleitores.
A regulamentação das prerrogativas do chefe de governo (primeiro-ministro) e do chefe de Estado (presidente) é ponto sensível. Por se tratar de reforma que atinge toda a engenharia constitucional, cujo custo é alto em termos de consenso, há o sério risco de que a reforma apressada gere graves disfuncionalidades constitucionais.
Uma mudança a toque de caixa, sem a devida maturação e ampliação do debate, pode produzir sobreposições de funções que levem a disputas predatórias entre os dois chefes, o que pode ser ainda mais dramático em modelos mistos, como o semipresidencialismo, também lembrado pelo debate. Isso se tornará sensivelmente mais agudo se o vitorioso nas eleições for um candidato contrário ao sistema.
Outro ponto que merece atenção diz respeito ao sistema eleitoral. O parlamentarismo, para funcionar a contento, requer partidos fortes e bastante disciplinados. A desastrosa proposta do “Distritão”, ora em apreciação no Congresso, agravará a fragmentação partidária, os custos de campanhas e o personalismo, correndo o sério risco, caso vingue, de transformar o parlamento em uma coleção de individualidades, grave no presidencialismo, ainda mais desastrosa no parlamentarismo.
Independentemente das virtudes ou dos problemas do parlamentarismo, essa solução dificilmente não será marcada com o carimbo do casuísmo e do atalho institucional daqueles que têm o poder, mas não tem os votos. A história se repete. E algumas vezes, ao mesmo tempo, como farsa e tragédia.
* Valter Carvalho é doutor em ciência política pela PUC-SP, professor e pesquisador na Universidade Federal do Piauí e Uninassau. Fábio Kerche é doutor em ciência política pela USP, pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa/RJ