De onde venho

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Foi com muita alegria que recebi o convite para expressar meus pensamentos nessa coluna. Eu gosto muito de escrever e sempre tive a escrita como um lugar seguro. Já na adolescência era meu processo de confiança. Não tinha muito no que confiar e confiava nos meus escritos. Depois, mais madura, a partir dos estudos entendi que a escrita é efetivamente um espaço onde mulheres negras podem definir a si mesmas em um mundo onde o racismo e o sexismo insistem em criar definições externas sobre nós.

Compartilhado de, Projeto Colaora




Na foto: Conceição Evaristo, no desfile da Beija-Flor, com o fardão que a ABL negou: escrevivências. Foto Eduardo Hollanda/divulgação

Escrever é um exercício de nomear a própria experiência. É tão potente que muitas mulheres negras teorizaram sobre essa prática. O que Conceição Evaristo nomeia como “Escrevivência” tem sido um método de inscrição intelectual da minha geração. Para além dos escritos de Conceição Evaristo, a produção intelectual de mulheres como Sueli Carneiro, Nilma Lino Gomes, Jurema Werneck, Nilma Bentes, Zélia Amador, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento e tantas outra s tem sido mobilizada por acadêmicas negras em suas teses, dissertações e monografias.

A circulação do conhecimento produzido pelo ativismo de mulheres negras brasileiras na academia é consequência de um legado de lutas que culminaram na maior presença da negritude nas universidades – mas não se resume a isso. Cada vez mais jovens negras produzem formas outras de conhecimento que não repousam necessariamente na academia. Há um potente conhecimento que transgride a necessidade de validação acadêmica, se potencializa e floresce nas criatividades resistentes do povo nas favelas e periferias.

Minha geração tem o privilégio de observar as potências dos movimentos de mulheres negras em vida. Podemos ouvir nas vozes daquelas que nos inspiram sugestões e conselhos de quem viu nosso país mudar de cenário muitas vezes. Não raro tenho a oportunidade de estar no mesmo espaço que muitas dessas que citei; quando isso ocorre me paro a ouvir atentamente o que elas têm a dizer. É um exercício de colheita epistêmica. Cada conversa me permite aprender algo que ainda não sabia, conhecer estratégias para desafios que não vivenciei, entender do que é feito o pensamento político das minhas mais velhas, ainda tão necessário em um país que segue tendo o corpo de pessoas negras como alvo favorito de suas políticas de morte.

Todo momento de presença é presente. Esse presente é a confiança. Entendi depois de um tempo que confiava tanto na minha escrita porque confio nas mulheres negras, confio no que elas me ensinaram e confio em mim mesma. Confio em mim mesma porque me permite fazer parte dessa tessitura coletiva de saberes que permitem nos expressarmos em nosso próprio nome.

Ao caminhar de braços dados com as minhas mais velhas, já há tanto tempo, me responsabilizo em dar continuidade a um projeto que há décadas tem sido gestado: a emancipação de meu povo. A libertação não será articulada pelos elegantes homens de ternos bem cortados, conforme ouvi de Vilma Reis há uns anos, mas feita da radicalidade amorosa dos projetos coletivos encampados por aquelas que sagazmente observam as dinâmicas de poder e contra elas se insurgem.

A práxis mobilizada pelas mulheres negras atravessa as fronteiras a partir da constituição de uma agenda política transnacional centrada na construção de análises que percebem o colonialismo e a histórica exploração do trabalho de negros e negras e dos povos originários como marcos fundantes das sociedades contemporâneas. O reconhecimento das perspectivas de mulheres negras enquanto centrais para constituir uma sociedade mais digna e equânime, portanto, não pode ser mera retórica ou representatividade vazia. O silenciamento do racismo epistêmico não pode seguir ditando os rumos das políticas que conduzem o que entendemos por justiça e direitos. Há muito, mulheres negras estão rompendo barreiras para a formulação de conhecimentos de oposição e ferramentas críticas que não se resumem a contributos acadêmicos.

É preciso ouvir também aquelas cujos nomes não circulam no mainstream que se obrigou a citar algumas de nós. Considerar os saberes das mulheres negras quilombolas e daquelas que articulam estratégias de sobrevivência no interior das favelas e periferias do Brasil, mulheres como Clátia Viera e Eliete Paraguassu. Ouvir aquelas cujo heterocissexismo silencia o direito à existência enquanto mulheres, como Robeyoncé Lima e Dandara Rudsan. O movimento que está convocado a partir da articulação política de mulheres negras da América Latina e do Caribe exige que olhemos para as lutas encampadas por nossas mais velhas, que ousaram desafiar o que estava posto para podermos ocupar lugares outrora proibidos; ao mesmo tempo, demanda criar processos de acolhimento que incentivem novas ações políticas permeadas pelas multiplicidades de nossas lutas e agendas.

O que escrevo é o que testemunho de onde venho. Espero viver o tempo de testemunhar o novo.

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