De Portugal ao Brasil: festas juninas foram dos rituais pagãos aos grandes eventos sem perder a centralidade no povo

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Celebrações conservam influências pré-cristãs e, mesmo nas era dos grandes espetáculos, são permeadas por coletividade

Por Nara Lacerda, compartilhado do Brasil de Fato




Desfile de grupos populares na festa dos santos em Portugal, qualquer semelhança com os trajes típicos das festas juninas brasileiras não é mera coincidência – Patricia de Melo Moreira / AFP

Um dos primeiros registros do que pode ser considerado uma festa junina no Brasil data do fim século 16, pouco mais de 80 anos após a invasão portuguesa ao território.  

As palavras do jesuíta português Fernão Cardim, escritas entre 1585 e 1590, já indicavam que, no chamado novo mundo, a celebração dos santos católicos iria ser permeada pela influência indígena e, posteriormente, africana. 

Cardim integrou uma das missões religiosas que percorreram o Brasil nesse período. Ele passou pelas capitanias da Bahia, Ilhéus, Porto Seguro, Pernambuco, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Vicente, que depois virou São Paulo.  

Em cartas direcionadas aos superiores em Portugal, o jesuíta descreveu a natureza do território, os costumes e condições de vida das populações originárias e o andamento do processo de catequização dessas comunidades. 

Nos relatos, Fernão Cardim cita o São João como uma das festas cristãs que as comunidades originárias mais celebravam. As fogueiras eram ponto de atração e dialogavam com a importância que esses povos davam ao fogo.  

“Suas aldeias ardem em fogos, e para saltarem as fogueiras não os estorva a roupa”, escreveu Cardim sobre o festejo. 

Um outro fator também pode estar conectado ao apreço que as populações tradicionais dedicavam à celebração do santo católico. Indígenas de diversas partes da América do Sul, incluindo povos do Brasil, celebram o início de um novo ano no mês de junho.  

A festa está ligada à chegada do inverno, à terra, ao sol e à colheita. O uso do milho em parte considerável dos quitutes dessa época no Brasil já era tradição antes mesmo da existência oficial dos festejos juninos. 

Curiosamente, a história mostra que a celebração das mudanças de estações também esteve na origem das festas cristãs de junho na Europa. Com o crescimento do cristianismo no continente, as comemorações pagãs em honra à fertilidade da terra passaram a ser substituídas por homenagens aos santos católicos.  

“Os povos mais ligados aos aspectos naturais tendiam a sacralizar esses elementos naturais, tais como a lua, o sol, a fogueira e as plantações. Eles consideravam esses elementos da natureza como seus deuses”, explica a pesquisadora, Bruna Castelo Branco, doutora em comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). 

Segundo ela, essa sacralização foi realizada por povos em todo o mundo, inclusive pelos romanos. A partir do domínio cristão em Roma, a Igreja Católica se apropriou dos rituais. 

“Com a dominação da Igreja Católica e a difusão da religiosidade católica ao redor do mundo ocidental, ela passou a incorporar esses elementos. Era uma tentativa de trazer elementos religiosos cristãos para a celebração. Porém, foi difícil conseguir desvincular os elementos da natureza das celebrações e dos rituais, porque está muito vinculado também a aspectos antropológicos”, pontua a pesquisadora. 

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Bruna Castelo Branco escreveu um artigo sobre o tema junto com a colega Claudiene Costa, também doutora em comunicação pela UFC. No texto, Festas de São João: Das Origens à Atualidade, elas apresentam o resultado de uma pesquisa que analisou os primórdios das festividades e a era atual dos espetáculos juninos. 

Claudiene Costa afirma que, mesmo atualmente, é possível identificar símbolos das celebrações ancestrais. “Há elementos que se repetem e é possível enxergar muita coisa em comum e muita transferência.”

A pesquisadora ressalta que, entre essas repetições, o caráter de reunião e coletividade está sempre presente. 

“Por exemplo, sempre houve esse elemento da fogueira para os indígenas. Na Bíblia, a fogueira marca o caminho para mostrar o local do nascimento de São João. Você tem o fogo, o se reunir, o celebrar. Na verdade, o que pode parecer distante no tempo é muito próximo nesse nosso conjugado de elementos.”

Apesar das conexões históricas com celebrações ancestrais do território, as festas juninas que Portugal trouxe ao Brasil já eram profundamente ditadas pela igreja e tinham toda a tradição cristã europeia como base.  

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Ao longo do tempo, além dos elementos indígenas, a cultura de povos do continente africano também foi incorporada às celebrações dos santos católicos. São danças, músicas e instrumentos presentes em diversas regiões brasileiras. 

O tambor, a zabumba e ritmos como o forró e o coco têm origem em manifestações artísticas e culturais das pessoas da África, raptadas e escravizadas pelo império português no Brasil.  

Toda essa mistura poderia ter distanciado as festas brasileiras dos festejos portugueses, que também acontecem até hoje. Mas o apelo popular ainda está presente nas duas nações. Assim como a expansão dos eventos, que viraram até atração turística. 

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O jornalista português Luís Leiria viveu 17 anos no Brasil e hoje está novamente em Portugal. Ele enviou ao Brasil de Fato um relato afetivo emocionante sobre as festas juninas em seu país natal.  

Na descrição de alguns costumes é possível notar a semelhança com tradições brasileiras, inclusive no simbolismo dos santos. “Santo António, celebrado em Lisboa, no dia 13 de junho, é conhecido como o santo casamenteiro. São João, o apóstolo do amor, é celebrado na grande festa da cidade do Porto, a segunda do país e a capital do Norte, a 24 de junho.”

Leiria também observa elementos pré cristãos nas festas atuais. “As festas de Lisboa contêm ainda algo dos rituais pagãos e das crenças populares. A brincadeira de saltar sobre fogueiras seria uma homenagem à luz que predomina sobre as trevas e que torna tão longos os dias de Verão. As crenças populares castigam o santo para que ele ajude a encontrar objetos perdidos. Enquanto o objeto não for achado, a imagem do santo ficará de costas, com o rosto virado para a parede. Já o tradicional vaso de manjerico deve ser regado e posto ao luar para trazer sorte nos amores.”

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No país ibérico as comemorações aos dias de São João, São Pedro e Santo Antônio levam milhares de pessoas às ruas, atraem visitantes e estão na lista das melhores celebrações populares da Europa.  

Em Lisboa, por exemplo, o dia de Santo Antônio (13 de junho), é o mais celebrado. A festa costuma ter celebrações matrimoniais coletivas. Os casais costumam trocar vasos de manjericão, que trazem pequenas mensagens românticas escritas em papel. 

No Porto, a festa de São João (24 de junho) tem proporções que mobilizam toda a região. As homenagens ao santo acontecem na cidade há mais de seis séculos e começam na noite anterior ao aniversário dele. Hoje, além das tradições, recebe shows musicais, fogos de artifício e visitantes do mundo todo. 

Já nos arquipélagos da Madeira, São Pedro é homenageado no fim do mês, principalmente como protetor dos pescadores. A sardinha assada é uma das receitas mais tradicionais do período e virou símbolo da festa. 

Luís Leiria afirma que estas são as verdadeiras festas de rua de Portugal, que reúnem música, comida e coletividade. Mas, assim como no Brasil, algumas regiões com tradição nos festejos passaram por processos de gentrificação e afastamento das populações que construíram as celebrações. 

“Característica destas festas é a multiplicação dos arraiais nas praças e ruas estreitas de desenho sinuoso, herdeiro dos bairros ‘mouros’. Nos arraiais há pequenos palcos onde se toca e se dança a música do popular Quim Barreiros, característico autor de letras cheias de duplos sentidos, como por exemplo o refrão o bacalhau quer alho”, diz.

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As raízes no interior e nas antigas aldeias também se assemelham ao percurso que as festas juninas traçaram no Brasil, das quermesses e comemorações do campo aos grandes eventos nas regiões metropolitanas. Lendas e misticismos também fizeram a viagem para o ambiente urbano. 

A designer, cantora e anfitriã turística, Marta Alexandra da Silva Freitas, nasceu na cidade portuguesa de Santarém e hoje vive em Lisboa e observa um caráter quase místico nos festejos, que celebra desde criança.  

“As festas dos Santos Populares, para muitos portugueses que como eu, cresceram e viveram a sua infância, adolescência e início da vida adulta em Portugal, são uma altura do ano meio mágica e mística. Na minha experiência, era como se quase se abrisse um portal de descobertas no meio das permissões a que estas festas convidam.”

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Ela destaca que o caráter popular e ancestral permanece, o que também se assemelha à experiência brasileira de celebração. 

“É uma altura de ocupação real das ruas, os amigos encontram-se no findar das aulas ou do trabalho, celebram o fim do ano letivo ou de uma etapa de trabalho que será marcada pelas férias que se aproximam. É-se convidado a abrir espaço ao relaxamento, ao divertimento e a celebrar as coisas boas e prazerosas da vida – as amizades, os amores, a comida.” 

As palavras de Marta explicitam que mesmo com espetáculos, pirotecnia e tecnologia – tanto no Brasil quanto em Portugal – as Festas Juninas dos Santos Populares são do povo. 

“Eu tenho um apreço muito grande, por exemplo, por ver o meu bairro, Freguesia da Ajuda, se juntar na rua neste mês. É como se houvesse um aspecto de comunidade que estamos a resgatar da vida, muitas vezes rápida e impessoal da cidade. Há um sentido de pertencimento quando vemos a banquinha da junta da freguesia com as senhoras a grelhar as sardinhas, os enchidos, as carnes das bifanas, as panelas enormes com o caldo verde ou dos caracóis.”

Edição: Thalita Pires

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