De prisioneiro de guerra a herói na terra da rainha

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Por Gerd Wenzel, publicado em DW – 

Ex-paraquedista da Força Aérea nazista, Bert Trautmann transformou-se em lendário goleiro do Manchester City e contribuiu para o restabelecimento das boas relações entre ingleses e alemães no pós-guerra.

Bert Trautmann
Em 2004, Bert Trautmann foi condecorado pela rainha Elizabeth 2ª pelos seus serviços prestados à implementação das boas relações entre alemães e britânicos

Lev Yashin, lendário goleiro da União Soviética dos anos 1950/60, não tinha nenhuma dúvida: “Só teve dois goleiros de classe mundial. Eu fui um, e o outro era aquele jovem alemão que jogava em Manchester – o Trautmann.”

Nada mal para um paraquedista da Força Aérea nazista que foi aprisionado pelos ingleses ao final da Segunda Guerra Mundial e levado para a Inglaterra, onde passou três anos num campo de prisioneiros de guerra. Inicialmente, ficou em Ashton-in-Makerfield e, mais tarde, na pequena cidade de Huyton, perto de Liverpool.




No próprio campo, os detentos organizavam jogos de futebol, e Bert Trautmann se destacava inicialmente como meio-campista do tipo limpa trilho. Numa dessas partidas, na hora de escalar o time, faltou um goleiro. A posição acabou sobrando para Bert, que, de pronto, revelou seu enorme talento natural para o posto. Nunca mais deixou de ser o titular do principal time do POW Camp 50 (Campo 50 – Prisioneiros de Guerra).

O alemão atuava tão bem que sua fama de excelente goleiro se espalhou pelas redondezas. Em 1948, com o fechamento da prisão e consequente libertação dos soldados alemães, Trautmann, em vez de voltar para a Alemanha, preferiu ficar na Inglaterra.

Tinha razões de sobra para tomar tal decisão. O pequeno clube local, o St. Helens Town AFC, estava interessado no goleiro e contratou o louro grandalhão germânico, mesmo sob os protestos de parte da torcida. Bert, como passou a ser chamado pelos ingleses, achava que poderia contribuir para reaproximar alemães e ingleses depois dos horrores da guerra, além de jogar futebol, naturalmente.

Décadas mais tarde, mais precisamente em outubro de 2004, foi condecorado pela rainha Elizabeth 2ª com o título de “Honorary Officer of The Most Excellent Order of the British Empire”, pelos seus serviços prestados à implementação das boas relações entre os dois povos.

Na ocasião, ele disse à rainha: “Eu sou aquele que fraturou o pescoço.”. E ela respondeu com a tradicional fleuma britânica: “Sim, eu sei.”

Elizabeth 2ª se lembrou do episódio no qual Bert fraturou a coluna cervical na final do FA Cup entre Manchester City e Birmingham City em 1956, no icônico Wembley Stadium. O lance aconteceu num choque com o atacante Peter Murphy, cujo joelho atingiu em cheio a nuca do goleirão do City. Faltavam 15 minutos para o encerramento da partida, e Bert aguentou firme apesar de dores torturantes. Garantiu com defesas monumentais a conquista do título.

Dias depois veio o resultado da radiografia. Só então foi confirmada a fratura da cervical, além da luxação de cinco vértebras. Trautmann, em decorrência da contusão, poderia ter ficado paraplégico ou, na pior das hipóteses, morrido. Sobreviveu, mas por cinco meses ficou engessado da cabeça aos quadris.

O jornalista Cristoph Bausenwein, no seu livro História e cultura dos goleiros, cita um comentarista inglês que, depois da emblemática final, declarou extasiado: “Ele sempre joga bem, e muitas vezes faz defesas extraordinárias. E depois tem dias em em que ele nos brinda com o sobrenatural e faz milagres. Hoje foi um dia desses.”

Foi o herói do jogo e acabou sendo escolhido como o melhor jogador da temporada. Muitos anos mais tarde, em 2005, entrou para o Hall of Fame do futebol inglês, além de ser eleito pela torcida do City como segundo melhor jogador de todos os tempos na história do clube.

Quando Bert Trautmann chegou ao Manchester City, em 1949, mais de 20 mil torcedores ensandecidos foram às ruas da cidade para protestar contra a contratação de um “alemão nazista, criminoso de guerra”. Muitos ameaçaram boicotar o clube.

Foi preciso a intervenção do rabino Dr. Alexander Altmann, muito bem-conceituado na cidade, para acalmar os ânimos. “Deixem ele jogar. Então veremos se ele é boa gente.”

Quinze anos depois, aos 41 anos, Bert deixava o Manchester City. Em seu jogo de despedida, no lendário Maine Road, aproximadamente 60 mil torcedores aplaudiram freneticamente o goleiro alemão.

Logo depois da partida, Bobby Charlton não deixou por menos: “É um dos melhores goleiros de todos os tempos.”

Enquanto isso, torcedores invadiram o campo para arrancar as traves e o travessão do gol. Justificaram a sua ação por entender que entre aquelas traves e debaixo daquele travessão ninguém mais teria o direito de jogar, a não ser o “titã teutônico”.

De inimigo a herói, Bert Trautmann, com sua contribuição ao restabelecimento das boas relações entre ingleses e alemães, concretizou como poucos o ideal do esporte de unir as pessoas e superar as diferenças sem distinção de nacionalidade, etnia ou religião.

Bert Trautmann nasceu em 22 de outubro de 1923 e viveu até 19 de julho de 2013.

Gerd Wenzel começou no jornalismo esportivo em 1991 na TV Cultura de São Paulo, quando pela primeira vez foi exibida a Bundesliga no Brasil. Desde 2002, atua nos canais ESPN como especialista em futebol alemão. Semanalmente, às quintas, produz o Podcast “Bundesliga no Ar”. A coluna Halbzeit sai às terças. Siga-o no TwitterFacebook e no site Bundesliga.com.br

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