Prestes a iniciar a última temporada de shows de sua carreira, Gilberto Gil já fez apresentação histórica na USP durante a ditadura militar
Por Mirela Costa*, com arte de Diego Facundini**, compartilhado do Jornal da USP
na foto: Em uma tarde de sábado de 1973, Gilberto Gil cantou e dialogou com cerca de mil estudantes presentes no Biênio da Escola Politécnica - Foto: Carmen Prado/Livro Cale-se
“Pai, afasta de mim esse cálice”, entoava Gilberto Gil a mais de mil estudantes reunidos no Anfiteatro Vermelho do Auditório do Biênio da Escola Politécnica, na USP. Era um sábado em maio de 1973 quando os jovens – aglomerados no espaço e até pendurados nas janelas – cantavam Cálice em harmonia com Gil. Em meio à intensa repressão da ditadura militar, era a primeira vez que a canção, proibida por agentes da censura, era exibida ao público na íntegra. Pouco mais de cinco décadas depois, o cantor e compositor baiano anuncia sua última turnê, Tempo Rei, que estreia em Salvador, na Bahia, no próximo dia 15 de março. O artista permanece na estrada até 22 de novembro, com shows em diversas capitais brasileiras.
Seja nos palcos pelo País, seja no ambiente universitário, Gil abrange ampla variedade rítmica e melódica, além de discutir temas que perpassam questões raciais e desigualdades sociais, cultura africana e oriental e até ciência e religião. Não foi diferente no show conduzido na Poli naquela tarde de 1973, em que cantou 23 músicas e dialogou com a plateia durante quase três horas – apenas ele e seu violão. A apresentação ocorreu a pedido de alunos da USP, que se mobilizavam para denunciar publicamente as seguidas prisões de estudantes da Universidade no Departamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). “Foi um momento muito interessante do ativismo estudantil, do ativismo artístico-musical, dos artistas da música brasileira, um momento forte da reação política do País em relação a todas as dificuldades que vivíamos”, lembrou o cantor em vídeo publicado em seu canal do YouTube em 2021 (assista no link abaixo).
Assista no link abaixo ao vídeo em que Gilberto Gil fala sobre o show que ele fez na Escola Politécnica da USP, em 1973.
Repressão na universidade
“O clima na USP era muito pesado, a gente convivia com a repressão cotidianamente”, conta Laís Abramo, então aluna de Ciências Sociais da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) e participante ativa do movimento estudantil local. Após o decreto do Ato Institucional 5 (AI-5) em dezembro de 1968, a perseguição a opositores do regime militar endureceu e práticas como sequestro, tortura e desaparecimento tornaram-se instrumentos de ação do Estado. Nas universidades, os estudantes tiveram suas liberdades cada vez mais cerceadas: em fevereiro de 1969, o governo Costa e Silva assinou o Decreto-lei n.º 477, que proibia manifestações de caráter político e atividades consideradas subversivas no meio universitário. Com suas principais organizações estudantis na clandestinidade, os alunos da USP enfrentaram, em março de 1973, um dos mais graves marcos da repressão na Universidade: o desaparecimento e assassinato do então graduando do quarto ano de Geologia do Instituto de Geociências (IGc), Alexandre Vannucchi Leme.
Laís Abramo – Foto: Valter Campanato/Agência Brasil
Apesar da intensificação do regime, as expressões artísticas e culturais eram as margens encontradas pelos estudantes para resistir à ditadura, estabelecer redes de conexão e levar discussões políticas ao corpo discente. Entre música, cinema, poesia, dança e teatro, “a cultura era a forma que a gente tinha de juntar diferentes grupos, se reorganizar e resistir”, como lembra Abramo. A fim de mobilizar a opinião pública em torno da morte de Vannucchi Leme, os integrantes do Conselho de Centros Acadêmicos (CCA) – entidade que reunia diversos centros acadêmicos da USP – recorreram ao arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns para a celebração de uma missa em intenção do estudante morto. A cerimônia aconteceu em 30 de março de 1973, na Catedral da Sé, diante de 5 mil pessoas.
Marcelo Chueiri, então presidente do CCA, relata que o episódio desencadeou uma sequência de prisões de alunos da USP entre os meses de abril e maio do mesmo ano: “Cerca de 30 jovens foram capturados e levados ao DOI-Codi, o que gerou uma revolta imensa”. Durante reuniões para decidir como agiriam frente à situação, os estudantes levantaram a ideia de expor as prisões em eventos culturais de grande repercussão. Naquele maio de 1973, Gilberto Gil e Chico Buarque estavam no centro do debate público devido à controversa performance no festival Phono-73, em São Paulo, em que apresentariam Cálice pela primeira vez. Na ocasião, o som do microfone de Chico Buarque foi cortado devido à censura da música, o que não impediu os cantores de seguirem com a performance. Os jovens do CCA admiraram a coragem dos artistas em cantar a música vetada e, como Gil passava por uma temporada de shows na capital paulista, formou-se a iniciativa de solicitar que ele fizesse a denúncia das detenções em seus shows.
Marcelo Chueiri – Foto: Arquivo pessoal



O show “proibido” de Gil
“Vocês estão me pedindo para subir ao palco para dizer coisas que vocês devem dizer?”, questionou o artista aos estudantes. Laís Abramo foi junto de Carlos Massafera e Oswaldo Balthazar – alunos da Escola Politécnica – ao camarim do cantor em um de seus shows realizados no antigo Teatro das Nações, em São Paulo, na tentativa de negociar as denúncias. “Como eu já havia sido vizinha do Gil em 1969, lá em Salvador, eu poderia tentar uma conversa com ele”, conta Abramo. Diante da contestação, Balthazar sugeriu, então, que Gil fizesse um show na Poli voltado ao público universitário. Embora o artista tenha hesitado inicialmente, o trio o convenceu a se apresentar na USP. “Ele [o Balthazar] teve essa ideia do show na hora, ninguém tinha combinado antes. Foi assim que surgiu”, detalha.
“Eu vim aqui porque, sei lá, os meninos me pediram. Disseram: ‘Ó, o pessoal lá da USP quer que você vá lá, é importante, é interessante pra eles, sabe como é…’. Eu não tinha muita ideia, não era muito preciso na minha cabeça o que eu poderia fazer”– Gilberto Gil em diálogo com estudantes durante o show na USP
Poucos dias separaram o convite a Gil da apresentação, o que fez os jovens se empenharem na rápida organização e divulgação do evento. No aguardado sábado do show, as movimentações eram intensas no Biênio da Poli. Um comunicado, entretanto, preocuparia os estudantes: a Assessoria Especial de Informação (Aesi) da USP – órgão ligado à Reitoria da Universidade, criado para vigiar a atividade estudantil – havia solicitado a suspensão do show. “O diretor da Poli na época, Rubens Guedes Jordão, veio me dar a notícia”, conta Marcos Bruno Castelhano, então estudante de Engenharia Química e presidente do Grêmio Politécnico. “Ele nos tratava como filhos, dizia para cancelarmos o show, senão seríamos presos. Eu disse para ele que não seria possível, já que ninguém mais aceitaria pessoas desaparecendo dentro da USP.”
Diante da firmeza da resposta de Castelhano e da proporção tomada pelo evento, o diretor cedeu à insistência dos alunos. Ainda assim, os membros do CCA prepararam um esquema de segurança em caso de invasão policial, com vigias dispersos pela Cidade Universitária. De carona com Abramo e Massafera no Volksvagen TL do estudante, Gil chegou à USP no fim da tarde e posicionou-se no centro do palco do Anfiteatro Vermelho, rodeado pelo público. “Se oriente rapaz/Pela constelação do Cruzeiro do Sul”, cantarolava ele, de modo a abrir a apresentação com Oriente.
Marcos Bruno Castelhano, presidente do Grêmio Politécnico em 1973 – Foto: CV Lattes
O cantor seguiu com diversas de suas músicas, como Chiclete com Banana, Expresso 2222 e Domingo no Parque, além de composições alheias, como Eu Só Quero Um Xodó, de Dominguinhos. “O show foi fantástico, foi um momento de afirmação que combinou atividade cultural e política”, afirma Chueiri, que se encontrava preso e havia sido solto um dia antes do show. “Era a sensação de que tínhamos feito um grande acontecimento. Além de ter superado a proibição do reitor, foi muito simbólico trazer um ídolo como Gil. Em termos de manifestação artística e cultural, foi um auge”, comenta Abramo. No decorrer da apresentação, o artista se dividiu entre cantorias e interações com os jovens presentes.
“Quer dizer, para levar a sua criação ao público, [o artista] tem que submetê-la a um sistema de triagem, ou seja, o poder institui uma coisa que no Brasil se chama censura, não é? E que vai fazer a seleção e determinar o que é a música que convém, a arte que convém ao povo”– Gilberto Gil ao responder uma pergunta da plateia sobre a atuação do artista em tempos de repressão
Gil já havia executado seis canções quando o público começou a pedir Cálice – censurada no mesmo ano e barrada no festival Phono-73. “O Cálice? Eu canto um pedacinho que eu me lembro, só”, disse Gil, ao argumentar que não se lembrava das estrofes escritas por Chico Buarque. Passado de mão em mão pela plateia, chegou no cantor, então, um papel arranjado pelos alunos com a íntegra da letra. Em um novo ato de irreverência à ditadura, o artista cantou a música inteira, de forma inédita. Ao final, o público aplaudiu fortemente a performance e clamou para que Gil a cantasse novamente, pedido que o cantor atendeu apenas no encerramento do show. Ao invés de permanecer apenas 30 minutos com os estudantes, conforme havia sido combinado com Abramo, Massafera e Balthazar no Teatro das Nações, Gil fez duas horas e meia de apresentação. “A gente ficou exultante naquele dia”, recorda Abramo.
Para além dos muros da USP
“Aqui dentro a gente sabia de tudo sobre as prisões. Fora, a situação era pouco conhecida”, relata Castelhano, que aponta o isolamento do cenário político da USP em meio à ditadura militar. Para ele, as mobilizações estudantis ocorridas em 1973 agregaram maior visibilidade aos presos políticos da Universidade e aliaram variados setores da sociedade civil à luta dos estudantes no combate à repressão, de modo a transcender o debate exclusivamente universitário. “Os alunos furaram o muro e as barreiras culturais da USP, o que aproximou grupos como sindicatos e operários. A gente descobriu que esse era o truque: tornar público”, explica. Abramo também sinaliza tanto a missa celebrada em memória de Alexandre Vannucchi como o show do Gil como momentos cruciais no enfrentamento do regime: “Ambos os eventos fortaleceram o movimento estudantil e serviram como pontos de inflexão”.