E o doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, na coluna “A César o que é de Cícero” está de volta ao passado, lembrando das coisas de sua infância. Ah, o Gigante do Sul ao qual se refere logo abaixo é o amigo, sábio, talentoso cantor e compositor gaúcho Marco Aurélio Vadsconcellos.
“(Para o Gigante do Sul, que me soprou este epíteto)
Sou um garimpador de reminiscências. Como tal, eu já perguntei a mais de uma pessoa sobre um livro que, acredito, li na infância. Não sei se era de Estudos Sociais ou de Educação Moral e Cívica. Talvez não seja nem mesmo tão relacionado assim a estas duas disciplinas. É que o livro tinha uma moral, algo pertubadoramente moral.
Mas creio que, com a menção às duas disciplinas, eu tenha dado evidências suficientes de que vim da escola (pública) dos anos 80. Com os nossos uniformes de camisa de botão, calça de brim ou tergal, tênis Kichute, Bamba, ou sapato Vulcabrás, líamos o que nos era solicitado sem espaços para desobediências. Quer dizer, a desobediência mais visível talvez fosse representada pelos cabelos compridos, desgrenhados ou não.
Dito isto, e o bendito livro? Bem, não era da coleção Vaga-Lume, com certeza. Também não era nenhum paradidático, daqueles de se fazer estudo dirigido ao final da leitura. Nem era “Os Meninos da Rua Paulo” (Ferenc Molnár), que li só Deus sabe quando, e que me marcou profundamente pela cena em que o grande líder da molecada, democraticamente, não vota em si mesmo em uma eleição para o presidente do grupo. Talvez o maldito livro nem meu fosse, fosse do meu irmão. Mas aquilo ali ficou na minha cabeça.
O que significa “aquilo ali”? Bem, a exemplo dos garotos da rua Paulo, se tratava de um grupo de meninos com suas avenças e desavenças. E havia o toque brasileiro na jogada porque eles brincavam em um terreno com árvores frutíferas e tal. Tudo ia bem até que certo dia eles descobrem que no terreno vai ser construído um prédio de apartamentos. Em meio à tristeza geral, o líder diz que, no fim das contas, um prédio ali vai ser bom para eles, porque eles vão poder formar novas amizades. (É o corte, a interrupção de um modo de vida. É a vida, é o corte, a interrupção da infância idílica, um não me deixe só, o progresso: ou como diria Aldir Blanc, o “pogresso”. É a lama, é a lama.)
No grupo dos meninos, havia um magrinho que reclamava de tudo. Para ele, nada estava bom. E pode ser até que o pobre do menino fosse mesmo um pé no saco, um pentelho, um estraga-prazeres, mas daquela vez eu julguei que ele tivesse razão. Eles perderiam o espaço por excelência das brincadeiras e da liberdade. Um terreno baldio, no imaginário infantil, é mais que uma praça, dá mais asas para a imaginação. E quem discordar que atire de bodoque na primeira goiaba ainda verde da goiabeira.
Enfim, eu ficava do lado do estraga-prazeres. Magrelo eu já era. E ficava resmungando: Bocó, como você vai entrar no prédio de apartamentos? Você não sabe que moleque como a gente nem sempre é bem-vindo, que a gente não tem bons modos, que a gente bota meleca no botão do elevador? Que a gente já ganha fama de moleque, pivete, maloqueiro, que o short da gente é sempre mais comprido, os pés mais ligeiros, as mãos mais leves? Carrinho de feira só chega até a porta da garagem da madame.
Que gente como a gente é sempre visada nas Lojas Americanas, nas Lojas Brasileiras, nas Casas Mattos, porque a gente mete a mão mesmo em uma balinha aqui, uma balinha ali, por prazer e necessidade. Você se esqueceu que os seguranças, se nos pegam, nos dão moca pra valer, nos aplicam corretivo sem dó nem piedade, parecendo que nasceram para dar o devido sossego ao descanso do patrão? Fora do terreno baldio, a vida é dura, de muito suor e pouco sonho.
Certa vez ouvi do seu Lino, o pai de Christiane Pinto Pereira, uma menina morena de olhos esverdeados, que o prédio onde eu morava no Engenho Novo foi construído em cima de um terreno baldio. Vixe, a memória de seu Lino e de Christiane me veio feito um raio, depois de tantos anos idos. Consigo ver: os bigodes dele; o Passat laranja; a letra dele; a letra dela; os olhos verdes dela, iluminando tudo tudo tudo. Como faz sentido o verso de “Até Pensei”, do Chico Buarque: “Eu andava pobre, tão pobre de carinho/ Que, de tolo, até pensei que fosses minha”.
Um dia lhes falo disso. Deixem-me desfalecer por ora, que toquei em campo minado, fiquei nostálgico, vou dar um rolê por aí pra comprar um Chicabon, espairecer. Iluminar é pouco.
Talvez ofuscar seja o brilho mais certo. Ofuscaram-se o terreno, as leituras, as brincadeiras, os prédios, as buzinas, o livro, os livros, as saúvas e as saudades.
Como lhe disse, eu sou um garimpador de reminiscências. E essa lembrança aqui não é um diamantizinho olho de mosquito, não, senhor.
Mas pensando bem, não tenho do que me queixar dos diamantes que pelo caminho topei. Eu não sou de sentar na calçada e chorar. Qual era o nome do livro mesmo?”
Imagem do post: Escultura dos “Meninos da Rua Paulo”, em Budapeste, de Szanyi Péter
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019), Circo (de Bolso) Gilci e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.