E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, nos transporta ao mundo duro e seco do Nordeste na década de 30. O cronista nos fala do livro e do filme, de 1963, principalmente da vida da cachorra denominada Baleia.
“A cachorra Baleia acompanhou-o naquela hora difícil. Repousava junto à trempe, cochilando no calor, à espera de um osso. Provavelmente não o receberia, mas acreditava nos ossos, e o torpor que a embalava era doce. Mexia-se de longe em longe, punha na dona as pupilas negras onde a confiança brilhava. Admitia a existência de um osso graúdo na panela, e ninguém lhe tirava esta certeza, nenhuma inquietação lhe perturbava os desejos moderados. Às vezes recebia pontapés sem motivo. Os pontapés estavam previstos e não dissipavam a imagem do osso.” (Trecho do livro “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos)
“Por acaso fiquei sabendo de uma anedota em torno do filme “Vidas Secas” (Nelson Pereira dos Santos, Brasil, 1963. Ùnico filme brasileiro indicado pelo British Film Institute como uma das 360 obras fundamentais em uma cinemateca). Quando o filme foi exibido no festival de Cannes em 1964 houve protestos em razão da cena em que se exibia uma suposta crueldade para com a Baleia, a cachorrinha-atriz. Julgou-se que ela havia sido sacrificada em prol da arte.
Para desmentir tal boato, Nelson Pereira dos Santos teve que mandar buscá-la no Brasil e enviá-la a Cannes. Em suma, “A sequência com a morte da cadela Baleia no filme foi filmada de maneira tão realista que chocou os espectadores do festival, que acusaram o diretor de crueldade animal”, diz a legenda de um vídeo do crítico Ismail Xavier sobre a referida repercussão do filme em Cannes. Não sabia de nada dessa história. E você?
Revi recentemente a cena da morte da Baleia em um curso online sobre cinema brasileiro. Fiquei impressionado com o carisma da cachorrinha. E fiquei mais impressionado ainda com a destreza do filme, pois os seus cortes, o seu ritmo, a sua montagem fizeram da cena algo exemplar, digno de atenção de quem estuda cinema.
Como se sabe, o filme é uma adaptação do romance “Vidas Secas” de Graciliano Ramos. É, na verdade, um exemplo feliz desta tabelinha entre cinema e literatura. O que quero fazer aqui é reviver tal tabelinha à minha maneira.
Eu li “Vidas Secas” em uma velha edição da Record, caindo aos pedaços. Talvez por ser fininho, era o livro de Graciliano Ramos a ser lido quando se estava em idade escolar. E, apesar de fininho, é uma obra-prima da nossa literatura e nos ensina e não nos intimida.
Senti uma enorme vontade de parar tudo que tenho a fazer e retomar a leitura de “Vidas Secas”. Procurei o meu exemplar nas estantes daqui de casa e não o encontrei, deve ter sido levado pelas traças. De fato, não encontrei nem sequer um título de Graciliano Ramos. Estranho. Será que as traças tem uma quedinha por esta literatura realista de retirantes? Ou será que os emprestei e não me lembro mais a quem?
Nesse vaivem entre livro e filme acabei lendo o capítulo da morte da Baleia pela internet.
Por que, de todos os treze capítulos (ou quadros, como preferir), o da morte da Baleia me parece o mais comovente, o mais memorável? É que a Baleia é fiel ao seus donos e a seus instintos. É porque ela não sabe que vai morrer e nós sabemos. É que em um mundo onde predomina a secura, inclusive de palavras e gestos, sua vivacidade traz alento. E talvez seja por isso que sua morte seja tão sentida.
Graciliano Ramos em pouquíssimas linhas constrói um quadro difícil de esquecer, nos dando acesso ao confronto entre ação exterior e pensamento íntimo do animal. Isto é, a representação do pensamento do animal transfigurada em linguagem.
Toda essa conversa me remeteu a uns artigos que o crítico John Berger escreveu sobre animais que estão reunidos no livro “Por que olhar os animais”. Por diversas vezes, Berger toca no ponto de que a vida rural dependia muito de uma convivência entre homens e animais. Não era exatamente humanizar os bichos, mas saber muito bem da importância deles e por isso valorizá-los. A industrialização fez com que tal vínculo fosse rompido.
Baleia tinha função de caça e de guarda, não era um mero animal de estimação, um brinquedo. Era um membro da família. O desespero das crianças a respeito do destino de seu bicho pode ser lido por esta ótica. Não deixa de ter um tom semelhante a decisão de Fabiano de abreviar o sofrimento da cachorra, lhe dando o tiro de misericórdia. Nunca é demais lembrar: Fabiano a sacrifica porque o animal está sob suspeita de ter contraído raiva e, com isso, poria em risco os demais.
Quando Baleia imagina a presença de preás gigantes enquanto morre, não se está diante de uma visão enviesada de chegada ao céu? Não estaria ela se consolando, vivenciando a ilusão? “Sonhamos com o que desejamos”, já dizia o velho Freud. Gansos sonham com milho. Baleias sonham com preás.
Eu vi “Vidas Secas” o filme no CCBB em tempos idos. À época estava na plateia ninguém mais ninguém menos do que a senhora Maria Ribeiro, a atriz que representou Sinhá Vitória. Tive a honra de bater palmas para aquela mulher cabocla, que vestia um elegante e discreto tailleur.
Irei rever em muitíssimo breve o filme, que está disponível na Netflix. Estarei preparado para ir além da cena da morte da Baleia? Não sei, não. A cabeça, entretanto, fervilha. A primeira publicação do livro é de 1938; o filme foi lançado em 1963 – um quarto de século os separa. Eu sou da geração em que se lia em camisetas de alunos de Agronomia nos anos 80, da Universidades da Bahia, que no Nordeste o problema não era seca, mas cerca – o que à luz de hoje me parece uma bandeira do MST.
Que as Baleias de hoje encontrem finalmente um lugar à sombra com as mãos e irmãos de Fabianos, agora mais falantes, mais esclarecidos, menos solitários na sua luta para não esperar pela cota de sonho e plantações onde reinam preás gigantes.
Leio aqui sobre o livro “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos
https://www.todamateria.com.br/vidas-secas-de-graciliano-ramos/
Sobre o filme “Vidas Secas”, Nelson Pereira dos Santos