Liderança caiçara denuncia aterramento do ecossistema em Ubatuba (SP); metade dos manguezais pode colapsar até 2050
Por Martina Medina, compartilhado de Brasil de Fato
Na Barra Seca, tradicional bairro de pescadores caiçaras de Ubatuba, no litoral norte de São Paulo, o manguezal vem perdendo espaço. Foram cerca de 7 mil m² de área perdida no bairro ao longo das últimas décadas, estima Jurandir da Silva, o Didi. Liderança caiçara local, ele faz o monitoramento da região e verificou novas faixas de aterramento de manguezal nos últimos meses.
“Este ano, como aumentou muito o desmatamento, com corte de mangue, guanxuma [espécies de plantas], rede de esgoto e cloro que está caindo aqui, o que diminui o oxigênio da água, o manguezal está morrendo mais rápido”, diz, em entrevista ao Brasil de Fato. Entre outros fatores de pressão está a construção de moradias irregulares.
Além da ameaça ao meio ambiente, a situação pode expor as casas do bairro a graves enchentes nos próximos dois anos, prevê a liderança. Sem os manguezais, cuja proteção é o mote do Dia Internacional para a Conservação do Ecossistema de Manguezais, celebrado em 26 de julho, a região perde uma barreira natural contra chuvas fortes e ressacas marítimas. “É uma tragédia anunciada”.
Didi defende uma intervenção com maquinário para evitar que a areia da praia siga avançando sobre o ecossistema. Moradores alegam que nada foi feito pela Prefeitura de Ubatuba para reverter a situação até o momento.
Em resposta à reportagem, a prefeitura afirma que o município, “através do contrato junto à concessionária Ubalimp, estará emitindo os serviços a serem realizados Limpeza Manual e Mecanizada de Orlas (exceto faixa de areia), Rios e Trilhas” e que “conta com atividade delegada junto à Polícia Militar Ambiental, podendo o cidadão acionar junto à prefeitura ou a própria PM em caso de crime ambiental.”
Ações de limpeza e de educação ambiental
Segundo Didi, diversas denúncias e solicitações foram feitas junto ao órgão público, mas as respostas e a fiscalização são insuficientes para preservar o manguezal. A liderança busca remediar a ausência do poder público recolhendo lixo de forma voluntária a cada quinze dias, na lua cheia e na lua nova, quando a maré baixa, e fazendo ações de educação ambiental no projeto Nativo Caiçara.
Só em garrafas PET já foram mais 5 mil unidades recolhidas, além de petrechos de pesca, embalagens e itens de lixo doméstico em quatro anos de iniciativa. Na praia, o caiçara expõe obras de arte produzidas com resíduos, além de banners informativos sobre a importância do bioma, lixeiras e uma bituqueira para a destinação correta do lixo no local.
Didi mostra painel usado em ações de educação ambiental na praia da Barra Seca, em Ubatuba (SP)/ Foto: Marina Rara/Brasil de Fato
Didi recebe alunos e faz ações em escolas da região compartilhar seus conhecimentos. Neste Dia Internacional para a Conservação do Ecossistema de Manguezais, está prevista uma ação de recolha coletiva de lixo. Sua motivação é manter vivo, para as futuras gerações, o ecossistema onde ele e sua família vivem há mais um século.
“Quando vejo o pouco do que resta desse manguezal cheio de esgoto, de lixo, de plástico, é como se tivesse uma faca ferindo o peito”, lamenta a liderança. “Estou nessa luta para salvar o pouco que ainda tem. Se vai dar certo, eu não sei. Mas eu vou morrer tentando.”
Risco local e global
A situação alarmante não se restringe a Ubatuba. No Brasil, a estimativa do Atlas dos Manguezais é de que um quarto desse ecossistema tenha se perdido apenas no século 20. Em todo o mundo, 67% dos manguezais acabaram ou foram degradados, segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).
O risco ao que ainda resta do ecossistema no planeta aumenta ano a ano. Segundo a International Union for Conservation of Nature (IUCN), 20% desse ecossistema é classificado em grave risco de extinção atualmente. A velocidade com que os manguezais estão desaparecendo é de três a cinco vezes mais rápida do que as perdas globais de florestas.
Um estudo da entidade alerta que metade dos manguezais do mundo corre o risco de colapsar até 2050. Segundo o documento, o aumento do nível do mar é a principal ameaça aos manguezais, seguido pela mudança climática e a maior frequência de eventos extremos, como enchentes e tempestades. Outros fatores de destruição são desmatamento, expansão urbana, construção de represas e poluição.
O ecossistema é responsável por sequestrar quatro vezes mais carbono da atmosfera do que as florestas continentais e podem estocar quantidades até dez vezes maiores, sendo crucial para combater a mudança climática. Barreira natural para o avanço do mar sobre a área de costa, ele também é essencial na adaptação a eventos extremos.
Impacto sobre as populações tradicionais
O manguezal ocupa cerca de 150 mil km² de área em 123 países pelo mundo. O Brasil é lar da segunda maior área desse ecossistema em todo o planeta, com 7% do total. A rica matéria orgânica que se acumula ali e a mistura entre água doce e salgada faz do manguezal um berçário onde se cria a maioria das espécies aquáticas, incluindo 78% dos peixes com valor comercial.
Didi deixou de viver da pesca para trabalhar como jardineiro e cuidador de casas de veraneio do bairro cada vez mais turístico. A pesca vem se tornando escassa devido à poluição e à expansão urbana que afetam o manguezal, rio e oceano. A população de Ubatuba saltou 50% em duas décadas.
“Não é que o peixe acaba. Ele migra para um lugar que tenha água limpa para ele viver. O lixo e o esgoto impactam muito nós, pescadores artesanais, porque a gente pesca em beira de praia, com canoa a remo”, diz. “Antes a gente pegava 600 kg de peixe com a rede. Hoje, não pega nem uma caixa. Não dá mais para vender. Daqui quatro ou cinco anos, a gente vai ter que comprar peixe se quiser comer.”
Didi explica que a praia é o palco principal e o manguezal é onde ficam os bastidores. “Se acaba o manguezal, automaticamente as praias também vão ficar mais poluídas”, afirma ele, sobre a função do manguezal de filtrar poluentes da água de rio e do mar e garantir o desenvolvimento de espécies marinhas. “O mar vai virar uma fossa gigante. O turista não vai vir mais para cá.”
Placa indica entrada e saída das tradicionais canoas caiçaras no Rancho Taoca, do Didi / Foto: Marina Rara/Brasil de Fato
A oceanógrafa Yara Schaeffer-Novelli, do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IOUSP), que trabalha há mais de quatro décadas em defesa dos manguezais, fala do impacto da degradação desse ecossistema sobre a subsistência de trabalhadoras e trabalhadores de comunidades tradicionais.
São pescadores artesanais, como Didi, além de marisqueiras e catadores de caranguejo. “Os manguezais são territórios dos povos e comunidades tradicionais, que dependem, para sua subsistência, de estar próximos a esse ecossistema”, diz. “São profissionais há centenas de anos atuando junto aos manguezais sem causar prejuízo porque eles não extraem mais do que o próprio sistema é capaz de repor.”
“As raízes do mangue não são só importantes para o manguezal. As pessoas também criam raízes ali. Raízes de história, raízes que permitem que elas respirem”, diz o professor Alexander Turra, do IOUSP, coordenador da Cátedra da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) de Sustentabilidade Oceânica.
Ele ressalta a importância do ecossistema não apenas para a subsistência dessa população, mas também para manifestações culturais e práticas espirituais dos povos.
Didi é prova dessa importância. “Isso aqui é a minha vida, minha paz, meu santuário. Sem ele, não dá mais para viver no planeta”, diz. “O manguezal é um coração – e ele está batendo fraquinho. Se parar de bater, tudo acaba: o siri, o guaiamum, os lagartos, as cobras, os peixes”, lamenta.
O que é preciso para salvar o manguezal?
Além do projeto Nativo Caiçara, mantido por Didi, há diversas iniciativas que visam proteger o mangue e restaurar o que já foi degradado em território nacional. Elas são tocadas por populações tradicionais, entidades do terceiro setor, empresas e setor público.
Apesar da relevância das iniciativas, para se chegar à raiz do problema, são necessárias mudanças estruturais, defendem os especialistas. A solução engloba deter a expansão imobiliária na costa, fazendo valer restrições já previstas na legislação ambiental por meio de uma fiscalização mais efetiva, além de conter a poluição por esgoto e por resíduos sólidos em rios e mares.
Garrafa PET no manguezal da Barra Seca, em Ubatuba (SP) / Foto: Marina Rara/Brasil de Fato
Outro ponto crucial é mitigar a mudança climática, diminuindo bruscamente as emissões de gases de efeito estufa, lançadas na atmosfera com a queima do petróleo, por exemplo. A elevação média do nível, estimada em 4 milímetros por ano durante sete décadas pelo IOUSP, é um efeito associado à mudança do clima e uma das ameaças ao manguezal. O avanço do mar causa o aterramento desse ecossistema, como relatado por Didi, em Ubatuba.
Yara alerta para a necessidade de deter a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 03, de 2022, que transfere a estados e municípios o controle sobre áreas costeiras e terrenos de marina, atualmente sob responsabilidade da União.
“Com PEC 03 estamos colocando em risco, em primeiro lugar, a subsistência das nossas comunidades costeiras”, diz a professora. Com a relatoria do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), a proposta está pronta para votação na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado desde o último dia 17 de julho.
Alexandre e Yara celebram o recém-aprovado Programa Nacional de Conservação e Uso Sustentável dos Manguezais do Brasil. Criado em decreto assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no dia 5 de junho deste ano, o ProManguezal tem o objetivo de conservar, recuperar e garantir o uso sustentável da biodiversidade e dos serviços prestados por esses ecossistemas no país. “É um programa que vai amalgamar os esforços existentes”, diz Alexandre.
“A gente tem que colocar o manguezal na pauta, mudar a forma como a sociedade entende o manguezal e fazer com que esses projetos sejam efetivamente implementados com recursos apropriados e com acompanhamento desejado”, resume o professor. “E, para isso, é importante que o Tribunal de Contas da União e dos Estados estejam atentos a cobrar a implementação dessas políticas públicas.”