País volta às urnas domingo em nova oportunidade para quitar graves dívidas sociais e políticas recentes. É fácil: basta digitar 13
Por Aydano André Motta, compartilhado de Projeto Colabora
Passou da hora de o Brasil aprender que inevitáveis, de verdade, só a morte e os boletos. Com os países, as contas vêm com a História – e os ocupantes desse rincão ensolarado e violento insistem em não honrar os débitos que se acumulam na marcha do tempo. Os juros e a correção dos calotes são pesados; geram mortos, feridos, desigualdade, tristeza, revolta, injustiças variadas.
Na mais patrimonialista das sociedades, a permanente aposta foi no conchavo, no “nem eu nem você”, no deixar tudo sempre igual. Perdem – e morrem – os de sempre: pretos, pobres, periféricos, mulheres, LGBTs, minorias em geral. No exemplo mais gritante, os brasileiros seguem a vida normalmente, ignorando os 50 mil assassinados a cada ano. Banho de sangue naturalizado.
O país que, ainda colônia, massacrou indígenas até quase exterminá-los, depois investiu na mais longeva escravidão (dura até hoje, em alguns cantos) e jamais pagou a volumosa conta social. Nas muitas vezes em que sabotou os Direitos Humanos e a democracia, preferiu perdoar os vilões, sedimentando dívidas profundas. Aposta, por aqui, só no racismo, na misoginia, na homofobia. Ao escolher não cuidar das feridas que fabrica, o Brasil acaba por eternizá-las.
Está em cartaz no Amazon Prime exemplo de cobrança bem executada da dívida de uma nação. “Argentina 1985” narra o julgamento dos generais que comandaram a sangrenta ditadura de sete anos, entre 1976 e 1983, no país. Mais de 30 mil pessoas desapareceram e as torturas estão entre as mais bárbaras da história humana.
Os argentinos escolheram não perdoar. Como mostra o filme estrelado pelo onipresente Ricardo Darín, levaram criminosos como Jorge Rafael Videla, o mais famoso e sanguinário dos ditadores, ao banco dos réus e os condenaram à prisão perpétua (o general morreu na cadeia, em 2013). Baniram a quadrilha do arbítrio da vida democrática e ainda investigam muitos crimes do período.
Chamado de “Nuremberg argentino”, em referência ao julgamento dos nazistas pós-Segunda Guerra Mundial, a cruzada judicial foi obra da coragem de Raúl Alfonsín, o primeiro presidente (1983-1989) do país redemocratizado. Relembra Ariel Palacios, jornalista e escritor radicado em Buenos Aires, profundo conhecedor da história de nossos vizinhos, que o julgamento se deu na esfera civil, por crimes de assassinato, tortura e sequestro, dentro do Código Penal vigente. “Uma conquista de Alfonsín, que venceu três tentativas de golpe, num momento em que os militares ainda mantinham grande poder, com o arsenal comprado para a Guerra das Malvinas”, contextualiza o correspondente da Globonews. “A desconstrução desse poder só veio nos anos 1990, no governo de Carlos Menem”.
A derrocada teve como emblema cena lendária, quando Néstor Kirchner chegou à presidência (2003-2007). “Proceda”, ordenou ao chefe do Exército, Roberto Bendini, que retirasse com as próprias mãos as fotos dos generais Videla e Reynaldo Bignone da galeria na Escola Militar de El Palomar. O ato de exuberante simbolismo aconteceu em 24 de março de 2004, aniversário do golpe de estado que, em 1976, depôs a presidente Isabelita Perón.
(Apenas imaginem Lula ou qualquer presidente mandando um oficial tirar o retrato de Geisel, Medici, Figueiredo ou outro general-ditador da galeria no Palácio do Planalto. É ruim, hein?)
“Argentina 1985” está disponível para quem quiser aprender. E não falta aluno do lado de cá da fronteira, onde ainda sobrevivem cartazes clamando pelo fechamento do STF e por “intervenção militar”. A horda que se apropriou da camisa canarinho da seleção não se constrange em atacar o estado de direito. Do lado de cá, da defesa, escalam-se os verdadeiros cidadãos de bem.
Jamais por acaso, o calote mais doído da história recente está ligado à ditadura militar. Ao contrário da Argentina, o Brasil escolheu não investigar crimes de Estado cometidos no período – a tal anistia ampla, geral e irrestrita – permitindo, entre vários erros, que prosperasse no Congresso uma excrescência, efeito colateral do arbítrio: Jair Bolsonaro.
Por décadas, quase ninguém se incomodou com o deputado bizarro, que proferia barbaridades em tom grosseiro, mas não tinha relevância na fauna do Legislativo. Nem quando ele exaltou o mais famoso torturador das Forças Armadas, Brilhante Ustra, no voto do pastiche parlamentar que golpeou Dilma Rousseff, houve qualquer comoção. Passou batido.
(Na lista do “não podemos esquecer”, estão os colegas jornalistas que, na antiética busca por audiência, deram voz e palanque para o capitão repetir ofensas e outras selvagerias. Quase todos hoje olham para o lado quando surge o assunto. Merecem ser lembrados para sempre como avalistas do desastre.)
Deu no que deu em 2018 – e o Brasil recebeu castigos variados por mais esse calote. Quase 700 mil mortos na pandemia, a Amazônia no caminho da destruição, o genocídio indígena, o desmonte do patrimônio público, a sabotagem às universidades, o permanente ataque à democracia e às liberdades e obrigações constitucionais. Uma lista macabra e interminável, que sinaliza reconstrução longa e penosa.
Para enfrentar Bolsonaro e sua horda de fanáticos, precisamos recorrer a um senhor de 77 anos, com inestimáveis serviços prestados ao país, que deveria estar descansando, mas teve de voltar em socorro. O buraco das dívidas é tão profundo que só alguém com a monumental popularidade de Luiz Inácio Lula da Silva pode toureá-lo. Estamos, de novo, pendurados no velho torneiro mecânico.
E domingo, o Brasil ganha nova chance de pagar um quinhão de suas muitas dívidas. Como na senha da maquininha do cartão, basta apertar o número certo: 13. (A outra opção nos transformaria no Afeganistão tropical.) Alguns débitos serão honrados e a vida pode retornar a padrões suportáveis – com muito por fazer, mas diante de algum horizonte.
Assim, vamos lá pagar – e, quem sabe, aprender, enfim, que não vale a pena ser caloteiro com a História.