Por Wagner Iglecias, para Revista Fórum –
Caso não receba muitos destaques em seu texto original, o projeto da terceirização vai significar um tenebroso movimento de flexibilização de direitos conquistados ao longo de anos de luta por gerações de trabalhadores. No limite poderemos ver, dentro de algum tempo, a criação de milhões de novos empresários neste país. Todos donos de empresas de um funcionário só
Há alguns anos uma dessas revistas destinadas a executivos de empresas privadas saiu-se com uma capa onde se lia: demita seu chefe. Na matéria repetia-se os jargões clássicos do mundo corporativo e tentava-se convencer o leitor de que a época dos direitos trabalhistas era coisa do passado e que o bacana mesmo era pedir as contas, montar um pequeno negócio ou mesmo uma empresa que prestasse serviços ao antigo empregador. Tudo embalado, claro, sob a aura modernosa do empreendedorismo, do individualismo e da livre iniciativa.
Nesta 4a. feira a Câmara dos Deputados votou o projeto de lei que institui a terceirização ampla, geral e irrestrita no mercado de trabalho brasileiro. O PMDB, formalmente um partido da base aliada do governo, abriu os trabalhos, despejando dezenas de votos a favor do projeto. E a primeira legenda da oposição a votar também a favor da proposta foi o PSDB (nada mais sintomático), seguido por aliados e adversários do Planalto, como PR, PSD, PSB, DEM, PDT, SDD, PPS e PV, que em sua grande maioria ou em sua totalidade também apoiaram o projeto.
Só o PCdoB, o PSOL e o PT votaram contra. Ainda falta a votação no Senado, mas já dá pra adiantar que o resultado obtido na casa presidida por Eduardo Cunha foi mais uma derrota acachapante do governo. Se confirmada no Senado, vai se tratar de algo ainda pior que isso: será um retrocesso histórico, um dos piores que o Brasil já viveu em muitas décadas na relação entre capital e trabalho.
De fato, o projeto, caso não receba muitos destaques em seu texto original, vai significar um tenebroso movimento de flexibilização de direitos conquistados ao longo de anos de luta por gerações de trabalhadores. No limite poderemos ver, dentro de algum tempo, a criação de milhões de novos empresários neste país. Todos donos de empresas de um funcionário só. Igualzinho ao que pregava a tal revista de negócios anos atrás.
Professores, arquitetos, operários, advogados, comerciários, médicos, enfermeiros, engenheiros e tantos outros profissionais hoje protegidos pela CLT deverão ser transformados, na prática, em prestadores de serviços. Em trabalhadores precarizados. Eles são hoje mais ou menos 50 milhões de pessoas que dentro em breve poderão passar à condição frágil dos 12 milhões de terceirizados existentes no mercado de trabalho brasileiro hoje.
Nossa referência de trabalhador já não será o metalúrgico sindicalizado ou mesmo o gerente de empresa que conta com salário, direitos diversos e uma série de benefícios, mas sim o motoboy, o frila e a diarista, verdadeiros empresários de si mesmos desde sempre.
A medida não terá somente consequências econômicas, com a diminuição da massa salarial e da participação do trabalho na renda nacional. Terá também dimensões políticas, com a implosão da classe trabalhadora brasileira enquanto ator coletivo com capacidade organizativa e por consequência a morte mesma do próprio Partido dos Trabalhadores, ou do que resta dele.
O nível de desorganização sindical e social que a medida deverá promover será suficiente para provocar mudanças até mais profundas que as vividas pelo país nos últimos doze anos, quando houve a incorporação de 40 milhões de pessoas ao trabalho formalizado e ao mercado de consumo. Só que serão mudanças em sentido contrário, rebaixando novamente à pobreza extrema estes setores.
Claro está (e é bom lembrarmos dos textos de FHC lá do final dos anos 1960 e início da década de 1970) que o empresariado brasileiro, salvo honrosas exceções, nunca pareceu muito entusiasmado com a possibilidade de criação de um grande mercado de consumo de massa neste país. Os anos do PT no Planalto, especialmente estes mais recentes, estão mostrando que se há algum tipo de sociedade possível entre nossa elite econômica e o governo é na generosa taxa de juros, e não na ampliação do capitalismo brasileiro.
Com um Congresso Nacional domesticado, até porque eleito sob seu patrocínio, o grande capital parece farto da brincadeira de ganha-ganha tentada e promovida pelo lulismo. Nossa elite já não se mostra mais interessada em continuar tendo de fazer concessões, por menores que sejam, para que os trabalhadores tenham ganhos reais de salário, como vinha ocorrendo nos anos recentes.
Como última esperança a quem vive de salário neste país resta torcer pelo veto à lei, mesmo que parcial, da presidente da república. Talvez seja a derradeira chance que o petismo terá de sair da armadilha em que colocou-se e foi colocado, e reencontrar-se com seu passado de lutas pela ampliação dos direitos da classe trabalhadora e dos pobres em geral.
Wagner Iglecias é doutor em Sociologia e professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.
Foto: Marcello Casal Jr/ABr – Agência Brasil