Por Mar Centenera, publicado em El País –
Câmara decidiu hoje legalizar a interrupção da gravidez até a 14ª semana. Texto segue para o Senado
A fratura social e política alcança até mesmo os partidos políticos. Exceto à esquerda, com uma posição unânime a favor do aborto, os demais blocos estão divididos. No Mudemos, a coalizão conservadora encabeçada pelo presidente Mauricio Macri, quase dois terços se opõem à lei. Na kirchnerista Frente para a Vitória, 53 de seus 59 legisladores votarão a favor. O único deputado socialista da Argentina, Luis Contigiani, renunciou ao partido, mas não a sua cadeira, depois da enxurrada de críticas internas que recebeu ao anunciar que seu voto será pelo não.
Desde o retorno da democracia à Argentina, em 1983, o projeto de lei a favor da descriminalização do aborto foi apresentado sete vezes no Congresso, mas nunca havia conseguido chegar ao plenário para votação. Sob a presidência de Cristina Fernández de Kirchner, a Argentina foi o primeiro país latino-americano a aprovar o casamento homossexual, em 2010, e a ter uma lei de identidade de gênero, em 2012. Mas Fernández de Kirchner sempre fechou posição contra o aborto. Seu sucessor, Mauricio Macri, também se opõe.
No entanto, a pressão social e a necessidade de desviar a atenção da situação econômica incerta influíram na decisão presidencial de apoiar o debate. Entre abril e maio, mais de 700 oradores a favor e contra o aborto legal passaram pelo Congresso. Mulheres que relataram sua experiência ao abortar, obstetras, geneticistas, cientistas, psicólogos, ministros, ex-ministros, escritoras, cineastas e celebridades expuseram seus argumentos em comissões parlamentares. Cada lado aplaudiu e viralizou as melhores intervenções. A romancista Claudia Piñeiro instou os partidários do direito a decidir a não deixar que lhes “roubem a palavra vida” em um emotivo discurso que foi retuitado milhares de vezes. Também foi muito festejada a exposição do ministro da Saúde, Adolfo Rubinstein, que contribuiu com cifras da queda da mortalidade materna nos países onde a interrupção voluntária da gravidez é legal. Entre os opositores, foi comovente o depoimento de Lorena Fernández, moradora de uma favela no centro de Buenos Aires, que relatou com crueza o aborto que teve de fazer aos 16 anos a pedido de seus pais e afirmou que para ela “um aborto é matar”.
O debate parlamentar rompeu o tabu que existia na Argentina e dezenas de mulheres admitiram pela primeira vez que em algum momento de suas vidas se negaram a ser mães ou ter mais um filho. Segundo estimativas citadas por Rubinstein, entre 350.000 e 450.000 mulheres abortam todos os anos na Argentina. Em 2016, 47.000 gestantes precisaram de atendimento hospitalar por complicações decorrentes da interrupção de uma gravidez e 43 morreram. “O aborto é uma questão de saúde pública, não de crenças religiosas”, dizem os defensores da lei, que instam os deputados a evitarem mais mortes por abortos clandestinos e a “fazerem história”. “O aborto não é a solução. Salvemos as duas vidas”, repetem os opositores.
Os dois lados se mobilizarão nesta quarta-feira no Congresso, mas estarão separados por um cordão policial. De telas gigantes instaladas em ambos os lados, cada bloco acompanhará o debate no plenário com o coração nas mãos. A sessão pode ir além das 18 horas (hora local) e a estimativa é que a votação ocorrerá na primeira hora de quinta-feira. Então se saberá se a Argentina deu o primeiro passo para voltar a se colocar na vanguarda da América Latina.