Por Andréa Martinelli, compartilhado de Huffpost Brasil –
Cinco decisões recentes do Supremo determinam que proibir ensino sobre gênero nas escolas fere princípios constitucionais.
Bandeira de Jair Bolsonaro desde a campanha eleitoral, o combate ao ensino sobre gênero nas escolas tem encontrado no Supremo Tribunal Federal (STF) um antagonista à altura. Desde o ano passado, cinco iniciativas municipais que proibiam a abordagem de gênero com estudantes foram julgadas inconstitucionais pela corte. Outras 10 com temática semelhante aguardam apreciação.
Na mais recente decisão, de 26 de junho, o ministro Luiz Fux disse, em seu voto, que o artigo do Plano Municipal de Educação de Cascavel (PR), de 2015, que proibia a “adoção de políticas de ensino que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual’”, estabelecia “censura prévia” aos professores.
“A norma municipal estabelece censura prévia que restringe sobremaneira o conteúdo da liberdade constitucional de ensino, que emudece o professor sobre um tema latente da realidade política e social do País”, afirmou o magistrado.
Ainda segundo Fux, a “proibição genérica de determinado conteúdo, supostamente doutrinador ou proselitista, desvaloriza o professor, gera perseguições no ambiente escolar, compromete o pluralismo de ideias, esfria o debate democrático e prestigia perspectivas hegemônicas por vezes sectárias”.
As outras decisões da corte foram referentes a legislações com o mesmo argumento apresentadas em Novo Gama (GO), Foz do Iguaçu (PR) e Ipatinga (MG). Em todos os casos o tribunal decidiu pela inconstitucionalidade das matérias por unanimidade.
Em dezembro de 2019, o ministro Luís Roberto Barroso também suspendeu os efeitos de dispositivo da Lei Orgânica do Município de Londrina (PR) que proibia a adoção de conteúdos relacionados às questões de gênero na rede municipal de ensino.
Segundo especialistas ouvidos pelo HuffPost Brasil, o posicionamento da corte “passa um recado” e, enfraquece pauta ideológica defendida por Bolsonaro, por grupos como o MovimentoEscola Sem Partido e lideranças religiosas.
“Existe uma disposição no STF em encerrar o assunto, do ponto de vista do debate constitucional”, diz Salomão Ximenes, professor de políticas públicas da UFABC (Universidade Federal do ABC) e membro da ONG Ação Educativa, que reúne cerca de 30 organizações da sociedade civil e tem atuado contra a censura nas escolas, com movimentação junto ao Supremo.
Em 2018, quando foi eleito, Bolsonaro afirmou que o MEC (Ministério da Educação) priorizaria “ensino de qualidade” para os jovens, “deixando de lado” temas relacionados à chamada “ideologia de gênero” e “voltada para o desgaste dos valores familiares”. Os dois ministros que já passaram pela pasta rezavam a mesma cartilha. Em junho deste ano, Bolsonaro nomeou o pastor presbiteriano Milton Ribeiro para comandar a pasta.
Ximenes chama a atenção para o fato de que a decisão do STF diz que permitir o debate de gênero não é só um direito à liberdade, mas é um dever do Estado. “O Estado, enquanto esse ‘ente genérico’ tem o dever de assegurar a educação para a temática de gênero, sexualidade. Isso contribui para o combate à discriminação em função de gênero e orientação sexual.”
O ministro Gilmar Mendes, em seu voto no final de maio – referente a lei do município de Ipatinga, em Minas Gerais– , afirmou que a abordagem de gênero e sexualidade é obrigação de secretarias de Educação, escolas e professores.
“O dever estatal de promoção de políticas de igualdade e não discriminação impõe a adoção de um amplo conjunto de medidas, inclusive educativas, orientativas e preventivas, como a discussão e conscientização sobre as diferentes concepções de gênero e sexualidade.”
No voto de Barroso sobre a Lei Orgânica do Município de Londrina (PR), o ministro disse que “vedar a adoção de políticas de ensino que tratem de gênero ou que utilizem tal expressão significa impedir que as escolas abordem essa temática, que esclareçam tais diferenças e que orientem seus alunos a respeito do assunto”.
“Ainda que a diversidade de identidades de gênero seja um fato da vida, um dado presente na sociedade que integram e com o qual terão, portanto, de lidar.”
Escolas militarizadas e futuro do debate de gênero
Os especialistas ouvidos pelo HuffPost, apontam que as decisões do STF também inviabilizam as propostas legislativas relacionadas ao Movimento Escola Sem Partido, que foi criado para combater uma suposta doutrinação de esquerda nas escolas e que abraçou a chamada “ideologia de gênero”, termo não reconhecido por acadêmicos e que se consolidou no âmbito religioso.
Em 2019, a deputada Bia Kicis (PSL) apresentou um projeto de lei considerado o mais rigoroso sobre o tema. O texto diz que é direito dos alunos gravar aulas, além de criar canal de denúncias anônimas sobre o descumprimento da lei e proíbe grêmios estudantis de fazerem “atividade político-partidária”. O cartaz “Deveres do Professor”, principal reivindicação do movimento desde o início, teria suas dimensões aumentadas. O projeto segue em tramitação na Câmara.
O “Movimento Professores Contra o Escola Sem Partido”, de 2014 a 2019, realizou levantamento que identificou 245 projetos de lei pelo País com conteúdos similares, que buscam limitar o que o professor pode falar na sala de aula e que têm relação, também, com a temática de gênero. Procurado pelo HuffPost, o movimento não respondeu.
Para o professor da UFABC, os fundamentos nas decisões que já foram tomadas pelo Supremo se aplicam às outras ações que ainda não foram julgadas e inviabilizam a aprovação de projetos como este. Segundo ele, o tribunal votou e reforçou a liberdade de expressão no exercício profissional de docentes, o pluralismo pedagógico e a vedação de censura prévia.
“Cria-se uma jurisprudência, nessa interpretação, já firme do STF. Mesmo que as leis derrubadas sejam leis municipais, a interpretação já vincula os demais poderes. Já não é mais aceitável qualquer tipo de ação do poder executivo de estabelecer qualquer tipo de punição, de apuração, infração administrativa, com base em legislação antigênero.”
Defensores do cerceamento deste debate defendem que falar sobre questões de gênero ― que incluem desde o entendimento sociológico do que é ser homem e mulher, até temas como gravidez na adolescência, violência doméstica e homofobia ― nas escolas seria um fator desviante na concepção de ideia tradicional família e também uma forma de “sexualização precoce”.
O MEC lançou projeto para converter, ainda neste ano ano, 54 escolas para o modelo cívico militar, mas a pandemia atrasou os planos. Este seria o primeiro ano do projeto, anunciado em 2019. Para Flávia Mazzitelli, doutora em educação e sexualidade pela UnB (Universidade de Brasília), as escolas militarizadas facilitariam o controle do governo sobre esses temas. “Ela é um meio muito mais fácil de se implementar a ideologia que o governo defende.”
A pasta também anunciou, em novembro do ano passado, um protocolo para fomentar a “cultura de paz nas escolas”, mas que, no entanto, prevê o envio de documento sobre “direitos do aluno” aos pais, alinhado com princípios do movimento Escola Sem Partido.
“A escola tem que ser um lugar democrático, de discussão de saberes, de ideias, de opiniões, e não só de aceitação da diversidade, mas de fazer com que as crianças e adolescentes entendam que ela é um valor fundamental da humanidade”, diz Mazzitelli.
Ximenes e Mazzitelli afirmam que este modelo de escola e de projeto são exemplos de um ambiente escolar que ignora debates contemporâneos e alinhados com a realidade.
“A escola militar é uma escola centralizada, com um currículo inflexível, duro”, diz Ximenes. “A gente comemora as decisões do Supremo. Mas o desafio agora é como lidar com o ‘pânico moral’ que já foi instaurado há anos no País sobre esses temas.”
Questionado pelo HuffPost sobre o projeto das escolas cívico-militares e o protocolo da cultura de paz nas escolas, o MEC não respondeu. A pasta também não comentou sobre as recentes decisões do Supremo. Procurado, o movimento Escola sem Partido também não respondeu aos questionamentos.
Há um ano, o movimento anunciou suspensão de atividades. Segundo Miguel Nagib, advogado e criador do grupo, o motivo foi principalmente a falta de apoio do presidente Bolsonaro. O movimento, porém, continua ativo nas redes sociais.