Do julgamento no STF aos reflexos no sistema prisional, entenda o caso que pode mudar condenações por porte da droga
POR TULIO GONZAGA. compartilhado da Revista Fórum
O Supremo Tribunal Federal (STF) continuou o julgamento acerca da descriminalização da maconha, nesta quinta-feira (24). O placar está 5 a 1 a favor da descriminalização e mais um voto favorável determina maioria em uma decisão histórica do STF. O julgamento é baseado em um fato concreto de prisão por porte de 3g de maconha.
Após oito anos, a Suprema Corte julga a constitucionalidade do Artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006). Após votos de Cristiano Zanin e Rosa Weber na última sessão, o ministro André Mendonça pediu vistas para melhor analisar a pauta. O pedido do ministro tem prazo de 90 dias.
Histórico da discussão
O Recurso Extraordinário (RE635659) está paralisado desde 2015, quando a discussão sobre a descriminalização foi interrompida para vista do então ministro Teori Zavascki., morto em 2017. Na época, três dos 11 ministros já haviam anunciado seus votos: o relator Gilmar Mendes votou a favor da descriminalização de todas as drogas; e os ministros Edson Facchin e Luís Roberto Barroso votaram a favor da descriminalização da maconha.
Em junho de 2019, o então líder do STF Dias Toffoli sinalizou interesse em incluir a pauta no calendário do julgamento, porém uma conversa com o ex-presidente Jair Bolsonaro e os ex-presidentes das Casas do Legislativo Rodrigo Maia (Câmara) e Davi Alcolumbre (Senado) o fez retirar a discussão.
A discussão, motivada por uma ação apresentada pela Defensoria Pública de São Paulo na qual um homem foi condenado pelo porte de 3g de maconha, voltou a contestar a punição prevista pra quem “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal”.
Ao substituir Zavascki no STF, Alexandre de Moraes devolveu o pedido de vista ao plenário em 2018. Contudo, o julgamento foi colocado em pauta apenas no primeiro semestre deste ano, em duas oportunidades que foram reagendadas para agosto.
Os votos dos ministros
Desde a reabertura da avaliação do crime por porte de drogas para uso pessoal, em 2 de agosto, os ministros do STF proferiram seus votos e análises pessoais acerca da ação. O placar, iniciado em 2015, já apontava 3 a 0 a favor da descriminalização.
Na ocasião, o ministro Gilmar Mendes considerou que o artigo 28 da Lei de Drogas é inconstitucional. Embora o caso em questão referia-se ao porte da maconha, o ministro votou pela descriminalização de todas as drogas ilícitas. Conforme sua fala, uma pessoa flagrada com drogas deveria ser levada a um juiz que decide o que deve ser feito.
Em 2015, os ministros Edson Facchin e Luís Roberto Barroso também votaram pela inconstitucionalidade do artigo, com ressalvas. Facchin afirmou que a descriminalização deveria ser feita “exclusivamente para o porte de maconha”, enquanto Barroso decidiu não se manifestar sobre os demais tipos de drogas.
Alexandre de Moraes, em agosto de 2023, votou a favor da descriminalização mediante apresentação de critérios que definem se o portador é usuário é traficante.
“Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.”
Alexandre de Moraes
Até o momento, o único voto contrário foi do ministro Cristiano Zanin, ex-advogado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Era esperado que o ministro votasse a favor da descriminalização.
Com a decisão de André Mendonça pedir vista e interromper o julgamento, os ministros Carmen Lúcia, Nunes Marques e Luiz Fux votarão na próxima sessão, sem data prevista.
A ministra Rosa Weber, no entanto, antecipou seu voto tendo em vista a sua aposentadoria. Weber votou a favor, deixando o placar em 5 a 1.
Os votos a favor são de: Gilmar Mendes, Edson Facchin, Luis Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e Rosa Weber, a presidente do STF.
Impactos para o usuário
Durante seu voto em 2015, Gilmar Mendes demonstrou sua rejeição à definição arbitrária de um delegado à respeito da quantidade de drogas portadas por uma pessoa ser definitiva no entendimento se o portador é traficante ou usuário.
Um levantamento da Agência Pública analisou mais de 4 mil sentenças de tráfico no estado de São Paulo e mostrou que, nos processos referentes a apreensões de até 10g de maconha, cocaína ou crack, 83,7% dos casos tinham os policiais como a única testemunha. Houve condenação em 59% deles, 15 pontos percentuais a mais do que em episódios com testemunhas civis.
Por isso, os ministros decidiram estabelecer parâmetros de distinção entre uso pessoal e tráfico. Barroso propôs limite de porte de maconha em 25g, mesma quantidade regulamentada por Portugal. De acordo com Facchin, no entanto, essas medidas deveriam ser tomadas pelo Executivo – até que o Congresso aprove lei sobre o assunto.
Em agosto de 2023, na retomada da discussão sobre a descriminalização, Alexandre de Moraes decidiu estabelecer uma regra para definir a quantidade da erva portada pelo indivíduo que determinaria uso pessoal ou tráfico. Moraes propôs um valor limite de 60g para classificar o porte de usuário. A partir deste número, o portador seria considerado traficante.
Ele mencionou o que os demais ministros também já haviam apontado: o artigo 28 da Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006) não define critérios objetivos para diferenciar o consumo pessoal de tráfico. A definição dos critérios é deliberada pelo sistema de persecução penal, em órgãos como o Ministério Público, o Judiciário e as Polícias.
De acordo com uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 43% das apreensões de maconha levadas a processos penais de tráfico de drogas estariam no limite de 60g.
A pesquisa do Ipea sugere, ainda, que 14% dos processos por tráfico exclusivo de maconha foram apreendidos com quantidade igual ou inferior a 60 gramas. O porte proposto por Moraes reduziria os processos criminais pela metade.
O aumento no encarceramento
Em 2006, o Congresso Nacional aprovou a Lei Antidrogas (Lei 11.343), vista como fator chave para o encarceramento em massa da população periférica, pobre e preta. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 revela que a população carcerária é de 832.295 pessoas.
O ministro Moraes informou, em seu voto, que cerca de 25% dos presos no Brasil, 201 mil pessoas, respondem por tráfico de drogas. “A partir da nova lei, o antes classificado como usuário passou a ser classificado como pequeno traficante, que tem pena maior. Houve um aumento no encarceramento”, disse ele.
Embora a Lei Antidrogas tenha deixado de prever pena de prisão, ela manteve a criminalização e teve aplicação pouco produtiva. Entre 2007 e 2013, o número total de presos no Brasil cresceu 80%. “Seis anos após a aplicação da lei, se triplicou o número de presos por tráfico de entorpecentes no Brasil”, informou Moraes, que relacionou o crescimento do encarceramento com o fortalecimento de facções criminosas.
“Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.”
Artigo 28 da Lei 11.343/2006
Moraes considerou a falta de critérios na qualificação como traficante ou usuário como “ uma injustiça muito grande”. A ausência de discrições para diferenciar usuários de traficantes tem resultado no encarceramento de características semelhantes (etnia, raça, cor, localidade etc).
De acordo com dados do Tribunal de Justiça de São Paulo, pessoas negras são mais condenadas por tráfico de drogas do que brancas. 70.9% dos negros foram condenados após julgamento no estado, em comparação com 66,8% de brancos. O branco foi classificado como usuário 1,5 vezes mais do que o negro.
“A lei não é igual para todos.”
Alexandre de Moraes, sobre a Guerra às Drogas em seu voto