Desculpe-nos, família Herzog

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Por Zé Roberto Padilha, Museu da Pelada –

Era mais um estádio, o Governador José Fragelli, o Verdão, em Cuiabá-MT, que o Flamengo inaugurava em 8 de abril de 1976. Mas dava para perceber, embora não conseguíamos entender, que havia algo no ar além daquele paraquedista que acertou o centro do campo antes da partida. Trazia junto ao corpo uma enorme bandeira do Brasil. Perfilados pro Hino Nacional, notamos (Cantarelli, Toninho, Rondineli, Jaime, Junior; Dequinha, Tadeu, Eduzinho e eu; Paulinho e Luizinho) que ao lado do Presidente Ernesto Geisel, na Tribuna de Honra, dezenas de quepes se sobressaíam no lugar daqueles cartolas de terno comuns àquelas ocasiões. E quando entramos em campo, uma faixa foi estendida sem que interpretássemos seu alcance: BRASIL, 12 ANOS DE PAZ E SEGURANÇA.




Inauguração do estádio

No meu aniversário de numero 64, que nos remete ao ano do Golpe, como jornalista e ex-atleta profissional de futebol, gostaria de prestar meu depoimento à Comissão de Verdade. Fomos coniventes e cúmplices sim, por desinformação, ao apresentar nossa arte em estádios de futebol, anestesiando o país enquanto seus filhos informados desapareciam nos porões do DOI-CODI.

Naquele dia, em Cuiabá, com dois gols de Luizinho, aos 5 e aos 19 do primeiro tempo, a maior nação esportiva do país estava em campo desviando a atenção da população ao lado daquela bandeira, das faixas, do autoritarismo imposto e fardado à repressão aos nossos direitos humanos, à liberdade de ir e vir, votar, assistir Calabar no teatro e Missing no Roxy. De viver e curtir uma nação livre e soberana.

Torcida lotou o estádio na inauguração
Torcida lotou o estádio na inauguração
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Nas nossas concentrações não havia Opinião e Movimento para ler, tinha Placar e Contigo. Nossos professores não eram universitários para nos alertar, eram militares como Claudio Coutinho, Admildo Chirol, Raul Carlesso, Ismael Kurtz, C. A. Parreira entre tantos. Todos egressos da Escola de Educação Física do Exército, na Urca, que eram inteligentes, competentes, mas detentores únicos das informações dos avanços sobre a preparação física, a evolução tática mundial, que eram censuradas aos demais civis treinadores como Zagalo, Osvaldo Brandão e, principalmente, João Saldanha. A última coisa que nos passavam em suas concorridas preleções era sobre a movimentação tática no Calabouço. Sendo assim, como seríamos politizados, entenderíamos e nos envolveríamos nos protestos naquele momento difícil?

Nossa prisão foi tão triste quanto a da Dilma, nosso exílio foi tão traumatizante quanto o do Brizola, do irmão do Henfil: fomos amarrados em paus de arara de chuteira para desfilar todos os domingos a distrair o povo. Não recebemos indenização, acreditem, foi muito pior. A cada dia que uma investigação traz à tona novos depoimentos sobre a farsa do 1º de Maio no Riocentro, lembramos que era no Maracanã que distribuíamos nosso ópio. Mas ao contrário do Chico e do Gilberto Gil, não nos deixavam saber o que estava acontecendo.

Sendo assim, família Herzog, do Edson Luis, nos perdoem. Enquanto defendíamos o Flamengo, Corinthians, Grêmio e Atlético Mineiro, ajudamos a aprisionar nossa nação. Não cobrem mais dos Zico, do Falcão, do Rivelino, de qualquer ídolo da nossa época o mesmo envolvimento de cantores, compositores, do Vladimir Palmeira, do nosso Ulysses Guimarães. Em 1976, em Cuiabá e em qualquer estádio do Brasil, nós realmente não sabíamos por quem estávamos jogando.

Desde 1982 não consigo mais torcer pelo Brasil. Em qualquer esporte. Ao trocar os vestiários pelos corredores em ebulição da Gama Filho, onde estudei Direito, sabia que meus companheiros da seleção brasileira voltariam da Espanha direto para subir aquela rampa em Brasília, onde iriam atrasar, com novas doses de ópio, nosso processo de anistia. As eleições diretas para Presidência da República. Queria os avisar, mas jogava no Americano, de Campos, e Paulo Rossi acabou fazendo isto por mim. Sei que avançamos na democracia, que estamos diminuindo a desigualdade social,  apurando a verdade da repressão, mas trauma é trauma.

Ernesto Geisel
Ernesto Geisel

Outro dia, meus filhos me pegaram torcendo pela Argentina, embora saiba que por lá seus jogadores foram tão coniventes quanto nós. Mas quando nossa bandeira sobe, toca-se o Hino Nacional, eu me lembro do Geisel naquela tribuna e a gente ajudando a ocultar a farsa dentro de campo. Estou procurando ajuda, quem sabe até a próxima Copa do Mundo eu consiga?

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