Desde a greve de 2018, vida de caminhoneiros só piora

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Por Thais Reis Oliveira, publicado em Carta Capital – 

Em 12 meses, a renda dos motoristas autônomos caiu 20%. Ganharam as transportadoras

AOS TRANCOS. PRATES TINHA CAMINHÃO PRÓPRIO E FATURAVA 12 MIL REAIS. HOJE TRABALHA POR UM QUARTO DO VALOR. (FOTO: WANEZZA SOARES)
Filho de pai caminhoneiro, Cristiano Prates escolheu a profissão por gosto. Queria experimentar a liberdade da vida na boleia e sonhava em faturar alto sem se submeter a um patrão. Nos tempos de bonança econômica, chegou a faturar 12 mil reais por mês com o próprio caminhão – usado, mas comprado à vista. O sonho não durou muito. De três anos para cá, ficou caro lidar sozinho com a manutenção, o combustível, o pedágio, os gastos com alimentação e o risco crescente da violência. Prates era obrigado a dirigir 16 horas por dia para cobrir as despesas. Nem assim deu conta. Sem alternativa e sem apoio, viu-se obrigado a vender o caminhão e aceitar uma vaga de motorista em uma transportadora. “Mesmo ganhando pouco, vale a pena, porque não tenho gastos com o veículo”, compara.




A empresa paga aos caminhoneiros entre 1,8 mil e 2,3 mil reais por mês. De regata, bermuda e chinelos puídos, Prates passa 26 dias por mês na estrada, transportando mercadorias entre o Rio Grande do Sul e o Espírito Santo. Quase não sobra tempo para acompanhar o cotidiano da filha adolescente, cujo nome ele grafou em uma tatuagem no antebraço direito.

A rotina divide-se entre a boleia de 2 metros quadrados, postos de gasolina para tomar banho e os galpões de carga e descarga. A espera para aboletar o caminhão pode durar até 3 dias. No caso dos autônomos, é ainda maior: não é incomum ter de aguardar até 15 dias.

Em 12 meses, a renda dos motoristas autônomos caiu 20%. Ganharam as transportadoras.

Para embolsar um pouco mais, Prates economiza nas diárias de 70 reais oferecidas pela empresa – divide as refeições com colegas de trabalho. No início da tarde da terça-feira 28, em um terminal de cargas na Zona Norte de São Paulo, ele e mais cinco companheiros haviam acabado de compartilhar um macarrão com molho de tomate e carne moída, feito no forno a gás adaptado na lateral do caminhão. O repasto custou a cada um 5 reais. O prato da noite anterior foi mais sofisticado. “Macarrão com frutos do mar”, revela, antes de abrir um sorriso e explicar que os tais frutos eram, na verdade, sardinhas enlatadas.

A história do caminhoneiro gaúcho confunde-se com aquela de vários colegas que ganham a vida pelas estradas do Brasil. Passado um ano da greve que quase parou o País, a rotina não melhorou. Ao contrário, está pior. O gosto pela direção é o único motivo que sobrou para insistir na profissão.

FOTO: FERNANDO FRAZÃO/ABR

Um ano atrás, incentivados por donos de transportadoras e pelo turbilhão de informações do WhatsApp, os caminhoneiros mostraram seu poder de uma forma nunca antes vista na história recente do Brasil. Os 11 dias de interrupção e desabastecimento causaram prejuízos estimados em 16 bilhões de reais. Crescia o temor de que um episódio à Chile de Allende antecipasse o fim do já moribundo governo Temer – não faltavam à época pedidos de intervenção militar. Os caminhões só deixaram as estradas após o então presidente anunciar a redução do preço do diesel e apresentar uma tabela com os preços mínimos dos fretes. Em consequência da paralisação, o PIB encolheu 0,2% no trimestre seguinte.

As ofertas do governo, entretanto, pouco mudaram a situação. Segundo um estudo dos economistas Cristiano Aguiar de Oliveira e Daniel Mesquita Pereira, da Universidade Federal do Rio Grande, a renda dos motoristas que trabalham por conta própria encolheu 20% desde a greve. O faturamento das transportadoras, por outro lado, subiu 28%.
A diferença nos ganhos de patrões e autônomos, apontam os economistas, é fruto da maior habilidade das empresas em reivindicar o preço mínimo da tabela de fretes. Com medo de outra paralisação, várias empresas montaram frota própria.

Sob um horizonte de indústria parada, combustível em alta, rodovias deterioradas e uma taxa de frete que muda ao sabor do vento – a falta de fiscalização faz com que o preço mínimo, na prática, não valha para os autônomos –, os problemas da categoria parecem longe de acabar.

Segundo o engenheiro Marcus Quin-tella, especialista da FGV Transportes, não há solução fácil. Os problemas dos caminhoneiros são os mais visíveis sintomas da falta de uma rede ampla e variada de transportes. “Ultrapassa a economia, é questão de saúde pública. Não faz sentido um caminhão cruzar 3 mil quilômetros.” Sem investimentos em infraestrutura, as empresas têm procurado alternativas. Desde a greve, o transporte por cabotagem (navegação na costa litorânea), cresceu 10% – e pode subir ainda mais, porque, no início deste mês, a Receita Federal devolveu um benefício fiscal derrubado um mês atrás.

Os caminhoneiros sentem falta de interlocução com o governo. Prates acredita que alguns dias a mais de bloqueio renderiam melhores frutos na negociação. “Bastou oferecer uma gasolina por 5 reais que correu todo mundo. Custava ficar um pouquinho mais? A briga não era só pelo óleo diesel”, reclama. Agora, diante da inércia da atual administração federal, ele não descarta a possibilidade de uma nova greve acontecer. “Tem um tom forte de ameaça nos grupos de WhatsApp”, diz ele, que carrega consigo três celulares.

FOTO: MIGUEL SCHNCARIOL/AFP

A categoria apoiou Bolsonaro maciçamente. Com Prates não foi diferente: o gaúcho deu voto ao capitão nos dois turnos, atraído pelo discurso de mudança e as promessas de apoio às reivindicações da classe. Até o momento, o governo resume-se, porém, a lançar migalhas: liberou o porte de armas para os motoristas e reduziu em quase 90% as multas de trânsito. O desprezo encurtou a lua de mel. O gaúcho, como tantos outros colegas, teme que a liberação de armamentos provoque mais violência nas estradas e não se empolga com a redução das multas. Uma arma, raciocina, só traz segurança se você estiver com ela na mão. Quando não é este o caso, só aumentam as chances de um roubo de carga ou mesmo de um assalto na beira da estrada terminar em tragédia.

O risco de uma nova greve chegou perto demais do Planalto em abril, depois que a Petrobras anunciou uma alta de 5,7% no preço dos combustíveis. Temeroso de um novo levante, Bolsonaro voltou atrás, desagradou ao “mercado”, interveio na estatal e vetou temporariamente a política de preços. Em um país tão dependente do transporte sobre rodas, não é blague que os caminhoneiros têm, e, sim, o poder de parar o País. O Palácio do Planalto não quis pagar para ver.

A onda refluiu, porém, desde que os líderes da categoria aceitaram se reunir com Tarcísio Gomes de Freitas, ministro da Infraestrutura. Entre os participantes estavam dois autônomos que emergiram como lideranças nos protestos do ano passado: o paranaense Wanderlei Alves, o Dedeco, e o goiano Wallace Landim, conhecido como Chorão.

Lideranças que emergiram nos protestos de 2018 acabaram cooptadas por Bolsonaro.

O governo não abriu a guarda para discutir o preço do diesel ou a redução dos pedágios. Foram tomadas, até agora, medidas de menor impacto, entre elas a digitalização de documentos e uma linha de crédito especial de 30 mil reais. Também foi anunciado um cartão-combustível, que evitaria o vaivém no preço do diesel entre um ponto e outro da viagem.

O grupo de Chorão não se dá com o de Dedeco. Mas as diferenças entre os rivais, ao menos no campo político, parecem ter sido dirimidas na reunião com o ministro. Desde o encontro, tanto o goiano quanto o paranaense trocaram a pauta de reivindicação dos motoristas pela defesa das reformas propostas pelo governo Bolsonaro, a começar pela Previdência. Chorão vai além: tornou-se um garoto-propaganda do bolsonarismo. O caminhoneiro tem gravado de próprio punho vídeos para explicar e enaltecer as ações do ministério.

Dedeco segue a mesma toada – comenta, curte e compartilha os comentários nas redes sociais do ministro da Infraestrutura e do presidente da República. Nos protestos do domingo 26, chegou a ensaiar uma convocação geral da categoria para mostrar apoio a Bolsonaro. Morador de Curitiba, enfeitou caminhões com faixas em defesa da reforma da Previdência e lançou uma música na qual Rodrigo Maia é chamado de Nhonho, personagem do seriado mexicano Chaves. De grande entusiasta de uma eventual greve converteu-se em um fervoroso defensor da tese de que, sem mudanças no sistema de aposentadorias e sem neutralizar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, não há a mais remota chance de a categoria melhorar de vida.

Chorão nega, porém, um acordo por debaixo da lona. “Não tem por que a gente ficar com guerra com o governo. Nem quer nem pode. Temos a obrigação de fazer este País andar para a frente. Vamos continuar andando junto e caminhando até quando ele cumprir o dele”, justifica.

Colocar as demandas da categoria em segundo plano, em nome de um suposto “projeto para o Brasil”, não seduz os caminhoneiros. A CNTA, entidade que representa os motoristas autônomos, quer uma revisão completa da metodologia proposta para a tabela de fretes. O método foi desenvolvido pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz e esteve até recentemente em consulta pública.

O Sindicato dos Caminhoneiros de Ourinhos, interior de São Paulo, apresentou uma ampla carta de reivindicações, incluindo o direito a 30% do frete de todas as estatais, o fim dos impostos sobre o diesel, a volta da aposentadoria especial ao motorista depois de 25 anos de atuação, o refinanciamento das dívidas e o lançamento de uma linha de crédito do BNDES de até 450 mil reais. Propostas como estas provocam urticárias no ministro da Economia, Paulo Guedes, e têm poucas chances de prosperar, enquanto o banqueiro ocupar o posto no governo (talvez não dure muito. Guedes ameaçou demitir-se caso o Congresso não faça uma reforma da Previdência que economize ao menos 1 trilhão de reais em dez anos).

O tempo, de qualquer forma, joga contra Bolsonaro e seus aliados Dedeco e Chorão. Nos próximos meses, a economia tende a piorar, e não a melhorar. Isso significa menos demanda, menos carga e menos trabalho para os caminhoneiros – e custos mais altos. As vãs promessas do paraíso depois da reforma parecem muito distantes para quem precisa pagar as contas no dia seguinte. Será preciso mais do que palavras de ordem para conter a insatisfação. A greve do ano passado fez balançar o governo Temer. Quais seriam as consequências de uma nova paralisação?

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