Estudo liderado por cientistas brasileiros aponta que substituição da vegetação nativa por pastos e plantações levou a aumento da temperatura e deixou o clima mais seco. Devastação é prejudicial ao agronegócio.
Por Nádia Pontes, compartilhado de DW
Nos últimos 15 anos, o desmatamento no Cerrado fez com que a temperatura média em partes do bioma subisse até 3,5 °C. Além de mais quente, a região, que abrange nove estados brasileiros e o Distrito Federal, ficou mais seca. Parte da água que retorna para a atmosfera por evaporação da superfície de rios, lagos, solo e transpiração das plantas, a chamada evapotranspiração, desapareceu. A combinação desses efeitos tem um resultado preocupante: redução das chuvas.
Os dados fazem parte de um estudo liderado por pesquisadores brasileiros que investigou como a devastação do Cerrado influencia o clima regional e a disponibilidade de água para a agricultura, publicado nesta quinta-feira (08/07) na revista Global Change Biology.
O Cerrado, o segundo maior bioma do país depois da Floresta Amazônica, já perdeu 46% de sua cobertura original. Ele é considerado um dos ecossistemas com maior biodiversidade do mundo.
É a primeira vez que uma pesquisa avalia os impactos sobre os diferentes tipos de vegetação desse bioma, composto por um mosaico de formações campestres que se assemelham a um gramado natural com poucas árvores; por savanas, que misturam arbustos e árvores; e formações florestais, que têm árvores mais altas e densas.
“Os resultados surpreenderam ao indicar os impactos significativos não somente da conversão de formações florestais, mas também das formações savânicas e campestres, que recebem menos atenção quanto à sua conservação e relevância para a estabilidade climática”, afirma Mercedes Bustamante, professora da Universidade de Brasília (UnB) e uma das autoras do estudo, em entrevista à DW.
A análise indicou que as regiões no Cerrado que abrigavam florestas e deram lugar a plantações e pastos sofreram os danos mais críticos. Em cidades do oeste baiano e do norte de Minas Gerais, onde a temperatura já é alta, a média saltou de 31,8 °C para 33,9 °C no período avaliado. Ao mesmo tempo, a queda média anual do volume de água bombeada para a atmosfera foi de até 44%.
Importância biológica
Para chegar ao resultado, os pesquisadores combinaram dados obtidos pelo satélite MODIS, informações sobre o uso da terra e mapas de cobertura vegetal dos anos de 2006 a 2019.
A substituição das savanas por plantações ou pasto levou a um aumento médio de 1,9 °C em regiões do Cerrado e queda de até 27% na umidade média anual. No caso das formações campestres, a alta no termômetro foi de até 0,4 °C e a queda na evapotranspiração média anual foi de 15%.
“Quando comparamos as diferentes formações vegetais do Cerrado, os impactos são maiores quando convertemos florestas em pastos e plantações. No entanto, a conversão de savanas é maior em termos de área e, por isso, também tem um peso significativo nos resultados”, ressalta Bustamante.
Análises apontam que a maior parte da cobertura original do Cerrado, 57%, era de savana. Em 2019, último ano a ser considerado no estudo, essa vegetação foi a mais desmatada no bioma, correspondendo a 61% do total medido, seguido por formações florestais (20%) e campestre (19%). Naquele ano, o desmatamento registrado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) foi de 6,5 mil km².
O Cerrado abriga mais de 12 mil espécies de plantas e mais de mil espécies de vertebrados – muito dos quais só são encontrados na região. Ele também é berço de importantes bacias hidrográficas, como a do São Francisco, Tocantins-Araguaia e do Paraná.
Celeiro mundial
Além dessa importância biológica, o bioma concentra grande parte do agronegócio brasileiro. Cerca de 12% da soja mundial é plantada na região, e 10% de toda a carne bovina exportada no mundo vem dali.
Essa pujança vista na agricultura, por outro lado, fica comprometida à medida que a vegetação desaparece. “As transformações em larga escala no Cerrado começam a alterar condições que são determinantes para o sucesso da agricultura, como a temperatura superficial e o retorno de umidade para a atmosfera”, comenta Bustamante, lembrando que os cultivos podem sofrer quebras com a seca.
Os estados que concentram a fronteira do desmatamento, a zona chamada de Matopiba, que engloba Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, devem sofrer mudanças ainda maiores com dias mais quentes e secos. Vista como local de expansão em potencial para cultivos como o da soja, Matopiba também contém a maior área remanescente de Cerrado.
Até 2019, cerca de 916 mil km² em vegetação nativa foram devastados para dar lugar a pastos (31%), soja (9%), cana-de-açúcar (2%) e outros cultivos.
Estima-se que, do Cerrado que ainda resta, grande parte (80%) tenha potencial para plantio de soja e cana-de-açúcar, culturas que devem crescer consideravelmente nas próximas décadas, segundo projeções da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em inglês).
Projeções futuras e baixa proteção
Além de medir o impacto do desmatamento entre 2006 e 2019 sobre a temperatura e umidade, o estudo projeta o impacto sobre o bioma de três possíveis cenários futuros. No pior deles, em que o corte da mata poderia chegar a 63,5 mil km² até 2050, a queda anual na evapotranspiração seria de 84 mm, com aumento de temperatura média de 0,7 °C para todo o bioma.
Segundo a projeção mais otimista, em que a devastação é cessada e são reflorestados 52 mil km² de mata cortada ilegalmente, mais água circularia no sistema (aumento de 4 mm), e a temperatura média seria reduzida em 0,04 °C em relação ao medido em 2019.
“Ainda assim, isso seria insuficiente para contrabalancear as grandes transformações climáticas que já ocorreram”, aponta o estudo. “Pesquisas sugerem que métodos promissores poderiam ajudar a restaurar, a um custo relativamente baixo, o mosaico que forma o Cerrado. Por outro lado, pode demorar décadas para que a vegetação seja recuperada com os atributos necessários”, dizem os autores.
Para Bustamante, o atual cenário internacional aumenta a pressão sobre o bioma. “As oscilações do dólar e dos mercados internacionais têm um impacto sobre a agricultura no Cerrado, que está orientada para a produção de commodities”, argumenta.
Uma das maiores preocupações está na pequena área destinada à conservação: cerca de 11% de todo o bioma estão protegidos em unidades de conservação e territórios indígenas. Percentual bem abaixo dos 46% destinados à proteção da Floresta Amazônica, por exemplo.
“Existem pelo menos 28 milhões de hectares de áreas nativas no Cerrado que não têm proteção legal, distribuídas principalmente no norte do bioma. Para evitar um agravamento da crise climática, é preciso ter incentivos para conservar nestas áreas e avançar na política de restauração da vegetação nos locais já degradados ou desmatados ilegalmente”, alerta Bustamante.