Por Maitê Ferreira, compartilhado de Jornal GGN –
A politização das Polícias Militares contra os governos de oposição ameaça a susbsistência das instituições democráticas no federalismo brasileiro.
Já sobravam razões que atestavam a necessidade da desmilitarização da Polícia Militar no Brasil muito antes de Bolsonaro chegar a ser eleito como presidente da República. A organização militar e a forma de atuação de policiamento ostensivo necessitam a construção da noção de um “inimigo interno”, que se conforma na ideia de “bandido”, que por sua vez normalmente tem raça e condição socioeconômica pré-definidas (negros e pobres). A polícia militar no Brasil é considerada a que mata mais em serviço em todo o mundo, conforme aponta relatório da Anistia Internacional [1]. Uma justiça formada por juizes militares, de competência própria, tende a uma situação de impunidade: em que os policiais em geral só chegam a ser afastados após dezenas de denúncias de assassinatos e homicídios.
O militarismo impõe laços indissolúveis de hierarquia corporativa, que deveriam se encerrar na figura dos governadores de cada estado, e acarreta também a proibição constitucional do direito de greve e sindicalização das PMs.
A proibição de greves entre os militares tem longo histórico constitucional no país. Todavia, a instituição policial militar, possui natureza essencialmente ambígua: são tanto militares quanto servidores públicos estaduais. Convocados pelos governadores para reprimir protestos de rua de funcionários públicos grevistas, vez ou outra são os próprios policiais militares que encabeçam movimentos paredistas, que levam à graves crises de segurança pública nos estados em que ocorrem. Entre dezembro de 2017 e janeiro de 2018, quando a PM do Rio Grande do Norte entrou em greve, mais de 100 pessoas foram assassinadas em 15 dias [2]. O dispositivo da Garantia da Lei e da Ordem (GLO) foi acionado, levando o Exército a tomar o controle da segurança pública no estado [3]. Apesar da ameaça de prisão dos envolvidos no movimento, ratificada pelo desembargador do TJ-RN Cláudio Santos [4], os policiais militares findaram conquistando sua reinvindicação de aumento salarial e auferindo o compromisso do governo de que não haveria qualquer investigação sobre os integrantes [5].
O grande impacto social das greves das PMs faz com que as corporações normalmente conquistem os seus pleitos, fazendo com que os governos sempre cedam as suas reinvindicações, apesar do caráter ilegal de tais movimentos. Todavia, a ascensão de Bolsonaro à Presidência da República, com apoio de amplos setores de policiais militares em todo o país, levou a uma transformação gradual da relação entre as Polícias Militares e seus chefes políticos: os governadores dos estados.
Os eventuais movimentos grevistas levados a cabo pelas Polícias Militares deixaram de ter um caráter eminentemente reinvindicatório e passaram a demonstrar feições políticas próprias. É o que se pôde observar na última Greve da PM no Ceará, no início de 2020. Iniciando aos moldes de uma paralisação clássica, o movimento trazia como reinvindicações da categoria essencialmente a elevação dos salários na corporação. O governo estadual enviou uma proposta de reestruração salarial para dar um fim ao conflito, em quatro etapas: “O projeto de lei que reestrutura a remuneração de policiais e bombeiros militares concede reajustes em três etapas (março de 2020, março de 2021 e março de 2022), elevando a remuneração gradativamente. Ao final desse período a remuneração de um soldado passaria dos atuais R$ 3.475 e chegaria a R$ 4.500” [6]. A proposta foi aceita pela maioria da categoria, representada através das associações de cabos e soldados que atuavam essencialmente como sindicatos no momento. Todavia, parte da base decidiu não aceitar a proposta, alegando que o aumento deveria ser concedido de uma vez só. A partir daí, a greve se conformou em verdadeiro motim, sem liderança clara.
Os contornos políticos se tornaram mais nítidos: a ala dissidente era a bolsonarista, para quem o caos na segurança pública do Estado governado por Camilo Santana (PT) favoreciam seus interesses particulares. Policiais mascarados furavam pneus e incendeavam viaturas, obrigavam os comerciantes a fecharem seus estabelecimentos e coagiam companheiros de farda que desejavam voltar a trabalhar [7]. Mesmo com a situação de caos na segurança pública do Ceará continuando sem motivos claros, o presidente Jair Bolsonaro e o então ministro da Justiça Sérgio Moro não condenavam o movimento e nem incitavam que a corporação acatasse a proposta de reestrutração salarial apresentada pelo governo de oposição para dar fim ao conflito [8].
A escalada das tensões levou a um desfecho conhecido. O Senador Cid Gomes, incitado pela população da sua cidade-natal de Sobral, tentou dar um fim ao arbitrário fechamento do comércio e ao toque de recolher imposto pela PM à população aterrorizada. Munido de um megafone e uma retroescavadeira, discursando junto à população, deu um ultimato aos policiais aquartelados. Quando tentou derrubar o portão do quartel com sua inusitada retroescavadeira, foi baleado no peito por um dos policiais mascarados, sendo posteriormente internado em um hospital em estado grave [9].
A repercussão nacional do atentado contra a vida do Senador Cid Gomes fez o governo a endurecer a ameaça de repressão contra os policiais amotinados, o que levou ao fim do motim mesmo sem anistia aos policiais envolvidos na continuidade do conflito [10].
Todavia, o bolsonarismo enquanto expressão política de amplos setores da corporação policial-militar está conduzindo à uma dissolução do vínculo hierárquico entre as PMs e seus respectivos chefes políticos: os governadores dos estados — o que é marcado pela politização dos novos conflitos em que a PM surge como ator político. A resposta de estados governados pela oposição à pandemia, decretando medidas de isolamento social e fechamento do comércio, levou Bolsonaro a incitar seus apoiadores a entrar em “guerra” e “jogar pesado” contra os governadores [11].
Mais liderados por Bolsonaro do que pelos próprios governadores, as polícias militares de vários estados estão assumindo uma postura ofensiva contra os governos estaduais. Em São Paulo, em uma formatura de sargentos, PMs vaiaram publicamente o governador João Doria que estava presente no evento, em ação orquestrada pelos setores bolsonaristas [12]. A associação de oficiais da Polícia Militar declarou publicamente que a corporação se colocava contra prender as pessoas que desrespeitassem o isolamento social [13], logo, assumindo que entendiam como legítima a não-aplicação da lei, por motivos políticos. O governador não conseguiu incorporar a PM para fiscalizar as medidas de cumprimento social decretadas no estado, deixando a fiscalização na mão da Vigilância Sanitária [14]. Enquanto os atos “Fora Doria” têm conivência pela PM, os atos antifascistas, contra o racismo e pela democracia foram por diversas vezes repimidos violentamente e terminaram com dezenas de pessoas presas [15].
No Distrito Federal, o governador do Distrito Federal Ibaneis Rocha declarou que a PM soube com antecedência da organização dos protestos pelo fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional e não tomou qualquer medida, mesmo em meio à vigência das medidas de isolamento social. Em resposta a esta omissão, o governador trocou o subcomando da PM no DF [16].
A democracia brasileira está sob ameaça paralela das duas cabeças da presidência da república: enquanto os militares, liderados por Mourão e os demais generais, ocupam cada vez mais os cargos de alto e médio escalão do governo, Bolsonaro se sustenta com sua firme base de apoio que beira os 30% da população, bem como tece contatos diretos com lideranças da PM em todos os Estados do país. Se os militares, sem expressar oposição, preparam-se para um autogolpe se assim a oportunidade permitir, Bolsonaro atua para corroer e dissolver os vínculos hierárquicos no interior da república e mobilizar seus aparatos sociais, policiais e milicianos em favor de sua continuidade. Se os militares estão com Mourão, as polícias estão com Bolsonaro, e irão escolher o presidente em detrimento dos governadores aos quais deveriam estar submetidos, se o momento assim exigir [17].
Acuada entre a cruz e a espada, a sobrevivência da democracia brasileira depende da aurora de novo brado forte e retumbante, que só pode vir das ruas: desmilitarização ou morte. Desmilitarização da polícia e da política, como ilustrado pelo título da obra organizada por Givanildo Manoel da Silva, de mesmo nome. O que já era imprescindível, agora se torna inadiável.
Referências
[1] https://exame.com/brasil/policia-brasileira-e-a-que-mais-mata-no-mundo-diz-relatorio/
[2] http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/videos/t/todos-os-videos/v/greve-de-policiais-rn-teve-101-pessoas-assassinadas-em-15-dias/6397207/
[3] https://www.poder360.com.br/brasil/rio-grande-do-norte-passa-comando-da-seguranca-publica-ao-exercito/
[4] https://www.poder360.com.br/brasil/policiais-que-promoverem-greve-no-rio-grande-do-norte-podem-ser-presos/
[5] http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/greve-da-pm-a-encerrada-apa-s-acordo/451399
[6] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/02/20/entenda-a-crise-na-seguranca-publica-no-ceara.htm?cmpid=copiaecola”
[7] https://brasil.elpais.com/brasil/2020-02-21/ala-radicalizada-da-pm-no-ceara-ecoa-bolsonarismo-e-cria-bomba-relogio-dificil-de-desarmar.html
[8] https://jornaldebrasilia.com.br/politica-e-poder/bolsonaro-e-moro-nao-condenam-greve-da-pm-no-ce/
[9] https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2020/02/19/senador-cid-gomes-tenta-entrar-em-batalhao-da-policia-com-retroescavadeira-e-e-baleado-com-tiro-de-bala-de-borracha.ghtml
[10] https://brasil.elpais.com/brasil/2020-03-02/policiais-militares-amotinados-aceitam-proposta-do-governo-e-encerram-greve-no-ceara.html
[11] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/e-guerra-tem-que-jogar-pesado-com-governadores-diz-bolsonaro-a-empresarios.shtml
[12] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/10/14/doria-diz-que-vaias-que-recebeu-em-evento-da-pm-com-bolsonaro-foram-orquestradas.ghtml
[13] https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/04/13/pms-de-sp-se-dizem-contra-prender-quem-desobedecer-isolamento-social.htm
[14] https://www.gazetadopovo.com.br/republica/breves/doria-fiscalizacao-pm-isolamento-social/
[15] https://noticias.uol.com.br/colunas/reinaldo-azevedo/2020/06/01/antifas-apanham-da-pm-fascistoides-bolsonaristas-provocam-e-saem-ilesos.htm
[16] https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2020/06/19/ibaneis-nomeia-novo-subcomandante-da-pm-apos-manifestantes-soltarem-fogos-contra-stf.ghtml
[17] http://blogs.correiobraziliense.com.br/vicente/governadores-sao-avisados-de-que-entre-eles-e-bolsonaro-pms-ficam-com-presidente/