Por Victor Cezar Rodrigues da Silva Costa, Justificando –
A tarefa da filosofia, para Marx – dos Anais Franco-Alemães de 1844 –, é a de, “depois de desmascarada a forma sagrada de autoalienação (Selbstenfremdung), desmascarar a autoalienação em suas formas não sagradas. A crítica do céu transforma-se, assim, na crítica da terra, a crítica da religião, na crítica do direito, a crítica da teologia, na crítica da política” [1]. O Direito não tem história própria, assim como também não o tem a religião [2], dado que se integram na totalidade das relações de produção.
No Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política Marx afirma que“na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais” [3]. A totalidade dessas relações constitui a estrutura social sobre a qual se erige, entre outras instituições, o Direito. O modo de produção da vida material condiciona, segundo Marx, a vida social. Assim sendo, o Direito será condicionado e veiculará os interesses daqueles que encampam a dominação dos meios de produção, isso é, os detentores do poder econômico, social e político. É por esse motivo que não se pode deixar de reconhecer que o poder político impõe seus interesses na legislação em geral, sob os mais diversos pretextos, inclusive o da defesa social [4].
Nessas circunstâncias é que se encontra o difícil paradoxo entre criticar a legalidade como reprodutora de valores de classe e ter, sob outras circunstâncias, que defendê-la. No entanto, entre a legalidade e a ruptura institucional que se aproxima, o mais lúcido – e talvez até mais subversivo para espanto próprio – parece ser a salvaguarda da primeira, já que a mesma tende sistematicamente a ser vulnerada. Esse é o objetivo a que se propõe essa pequena reflexão: apontar alguns mal-entendidos, interpretações midiáticas enviesadas e utilizações políticas dos constitucionalmente chamados “Crimes de Responsabilidade”. Pretende-se alcançar tal desiderato com comentários críticos a respeito dos pequenos mitos cotidianos criados em torno de tais crimes.
1. “O impeachment e os crimes de responsabilidade são constitucionalmente previstos, logo não há que se falar em golpe“
Em realidade, tanto o instituto jurídico do Impeachment quanto os crimes de responsabilidade estão previstos nos artigos 85 e 86 da Constituição Federal, bem como na Lei 1079/50. De fato, desde a Constituição da República de 1891 a responsabilidade do Presidente é prevista [5]. Todavia, entre estar previsto e ser devidamente comprovado há uma grande distância.
Pontes de Miranda esclarecia ser o Impeachment “a medida que tem por fito obstar, impedir, que a pessoa investida de funções públicas continue a exercê-las” [6]. Essa medida, no entanto, não está arbitrariamente liberada aos anseios partidários ou midiáticos. Exige elementos sólidos de caracterização de um crime de responsabilidade, seguindo a tramitação constitucional e legalmente estabelecida.
O Impeachment não pode ser ventilado apenas como forma de descontentamento popular ou partidário. Não é mais possível conceber, como ocorria à época da Constituição de 1824, a irresponsabilidade do Chefe de Governo e de Estado. Este é um corolário da democracia. Outro, sem sombra de dúvida, é o de que não pode haver democracia sem eleições: “embora possa haver eleições sem democracia, parece certo que não há democracia sem eleições”como lembra Paulo Brossard [7]. Poderíamos afirmar, assim, que as eleições apenas garantem a existência de uma Democracia formal, como decorrência também de um conceito formal de cidadania baseado na capacidade eleitoral.
Não obstante, não se pode esgotar o conceito de Democracia em uma vertente meramente formal, aparente, visível. Nas palavras de Marcos Nobre deve ser entendida como “uma forma de vida que se cristaliza em uma cultura política pluralista, organizando o próprio cotidiano das relações entre as pessoas” [8]. Democracia, sob esta perspectiva, pressupõe uma atitude democrática dos indivíduos, das instituições e da mídia. Isto requer, outrossim, o respeito à legalidade e às regras do jogo. Antes de se sair bradando a responsabilidade de qualquer que seja, a presunção de inocência, os princípios da ampla defesa e do contraditório e o respeito ao devido processo, estabelecido constitucionalmente, são condições mínimas, para além da barbárie, de se conviver em uma cultura pluralista. Caso assim não se proceda, poderíamos facilmente retroceder à época da caça às bruxas ou da inquisição.
Em recém-publicada análise de conjuntura, Leonardo Avritzer aponta que se vive, no Brasil, uma crise de crescimento e de evolução da cultura democrática. Tal impasse, segundo o Cientista Político, centra-se, dentre outros elementos, na deslegitimação do presidencialismo de coalização, isto é, da necessidade das amplas alianças para se manter a governabilidade, dado que o sistema pelo qual o Presidente é eleito não lhe garante maioria no Congresso para aprovar propostas da agenda de governo. Isso importa no amplo contingenciamento político dos recursos orçamentários e na indicação dos cargos no Executivo. [9]
Em que pesem as imoralidades decorrentes das formas pelas quais se dão esses arranjos em prol da governabilidade, à oposição ou aos descontentes não é dada a prerrogativa de acusar o chefe do Executivo sem provas ou sob pretextos diversos daqueles previstos legal ou constitucionalmente como formas de afastamento. Se não temos uma cultura pluralista, pelo menos que se respeitem as eleições, ou se prove efetivamente a responsabilidade por crime legalmente capitulado!
2. “Os crimes de responsabilidade são crimes na acepção jurídico-penal”
Os crimes de responsabilidade são crimes funcionais, no sentido jurídico-penal, ou tão somente infrações políticas e/ou administrativas regidas pelo Direito Administrativo Sancionador? Essa natureza, doutrinariamente, é controversa em virtude de sua denominação. Desde a Constituição de 1891, em seu art. 54, fala-se em crimes de responsabilidade, sendo repetido nas Cartas de 1934, 1937, 1946 [10] e 1967. [11] A celeuma parece ser superada quando se analisa a natureza da sanção imposta a tais “crimes”. O art. 2º da Lei 1079/50, combinado com o parágrafo único do artigo 52 da Constituição Federal, prevê como consequência política do crime de responsabilidade a perda do cargo, com inabilitação de até 8 anos para o exercício de qualquer função pública. Esta é a conclusão de José Frederico Marques: “se o crime de responsabilidade não é sancionado com pena criminal, como delituoso não se pode qualificar fato ilícito assim denominado, pois o que distingue o crime dos demais atos ilícitos é, justamente, a natureza da sanção abstratamente cominada” [12].
O próprio artigo 86 da Constituição de 1988 diferencia os chamados Crimes Comuns – a serem julgados pelo Supremo Tribunal Federal, de acordo todos os direitos e garantias do direito e do processo penal – dos chamados Crimes de Responsabilidade, de competência para julgamento do Senado Federal. Por esse motivo, Brossard enaltece tratar esses últimos de infrações políticas/administrativas as quais submetem exclusivamente agentes políticos [13]. Mesmo assim, admite o ex Ministro do STF: “o impeachment é um processo de feições judiciais, que ao se emancipar do processo criminal dele conservou, contudo, as formalidades e os estilos” [14]. Os dois, no entanto, exigem juízo de admissibilidade perante a Câmara dos Deputados. Por esse motivo que, mesmo sendo condenado por crime de responsabilidade, pode o Chefe do Executivo ser absolvido por eventual crime funcional, no sentido penal do termo.
Diante dos efeitos que podem provocar as sanções de natureza política previstas para os Crimes de Responsabilidade, bem como do risco de ruptura da vontade popular, tende-se a considerar, com Juarez Tavares e Geraldo Prado, que, a exemplo do que ocorre com as infrações à ordem pública do Direito Administrativo sancionador, devem a eles serem aplicados os mesmos critérios e princípios de limitação decorrentes do Direito Penal [15]. Isso importa em afirmar que, para se caracterizar, demandam: a) de lesão ou perigo de lesão a bens jurídicos; b) submissão ao princípio da legalidade e seus corolários (lei escrita, escrita, prévia e certa); c) exigência dos requisitos de imputação objetiva e subjetiva [16]. Apesar de infração política, contudo, sua atribuição deve ser jurídica.
Os crimes de responsabilidade devem se limitar a proteger a ordem jurídico-constitucional, e não ser a panacéia de todos os males para atribuir responsabilidade à agentes políticos. Justamente para servir de apoio à manutenção da ordem democrática, do Estado de Direito e da vontade popular, como instituto constitucionalmente previsto, é que Tavares e Prado consignam a necessidade da responsabilidade ser limitada e adstrita à legalidade e seus corolários, não se admitindo punições por antipatia, ideologia ou vontade midiática. [17]
3. “Os crimes de responsabilidade admitem interpretação extensiva”
Em que pese os crimes de responsabilidade serem considerados infrações políticas/administrativas, a natureza de suas sanções demanda uma interpretação diferenciada quanto aos princípios a serem aplicados em sua apuração. A submissão aos princípios do Direito Penal, como acima consignado, demanda, em especial, o princípio da legalidade e a necessidade da lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico – no caso, a estabilidade do Estado e da ordem constitucional.
Como asseveram Tavares e Prado, “os crimes de responsabilidade, portanto, não são infrações administrativas abertas, que possam ser preenchidas por obra da interpretação do agente sancionador” [18]. É decorrência da legalidade que a punibilidade de qualquer conduta esteja legalmente determinada anteriormente ao fato, não cabendo a quem julgar – nesse caso, o Senado Federal – fixar arbitrariamente os limites da punição. Uma criminalização que não determina legalmente os critérios necessários para que se possa aplicar uma pena é tida por inconstitucional e nula [19]. As criminalizações, além de prévias, devem ser determinadas. Importa, portanto, em afirmar que se interpretarem restritivamente!
Malgrado a crítica de que o art. 85 da Constituição apresente os crimes de responsabilidade de maneira aberta, vaga e pouco delimitada, infringido assim o corolário nullum crimen nulla poena sine lege certa, entendo, em verdade, tratar-se tão somente de uma espécie de “mandado de criminalização” – não de crime propriamente dito, apesar de assim estar consignado no texto constitucional, mas de infração política. Como se extrai do parágrafo único do referido artigo, “esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento”.
A Lei 1079/50 individualiza as condutas previstas na Constituição: os crimes contra a existência da União no art. 5º; os crimes contra o livre exercício dos poderes constitucionais no 6º; o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais no 7º; a segurança interna do país no 8º; a probidade na administração no 9º; a lei orçamentária no 10º; a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos no 11º; e o cumprimento das decisões judiciais no 12º. Se a conduta a ser imputada não corresponder a alguma das hipóteses previstas nesses artigos, seja em seus elementos objetivos ou subjetivos, não há que se falar em Crime de Responsabilidade.
4. “A chamada ‘pedalada fiscal’ está prevista expressamente na legislação como crime de responsabilidade”
A denúncia de Crime de Responsabilidade protocolada pelos juristas Hélio Bicudo, Miguel Reale Junior e Janaina Paschoal teve como um de seus fundamentos principais a imputação à Presidente da infração administrativa prevista no art. 36 da Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF), no qual se lê: “É proibida a operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo” [20].
Como anteriormente se fez anotar, o respeito à legalidade estrita parece direcionar como crimes de responsabilidade passíveis de dar ensejo ao processo de Impeachment apenas aqueles previstos na Lei 1.079/50. Os signatários da denúncia, porém, não foram incautos. Apontaram o art. 10 da referida lei em seus incisos 6, 7, 8 e 9 [21]. A questão que se coloca é: esses incisos abarcam o que se denomina por “pedaladas fiscais”?
A controvérsia, nesse caso, nasce do fato de os subscritores do pedido de impeachment considerarem as chamadas pedaladas, consubstanciadas no atraso de repasses à bancos públicos, como operações de crédito. Deixaram de lado o fato de outros governadores terem incorrido na mesma prática, bem como os outros fundamentos apresentados na peça acusatória, atentar-se-á apenas para a qualificação jurídica do instituto como metonímia de toda a exordial. Como esclarece Ricardo Lodi em artigo intitulado “Pedaladas hermenêuticas no pedido de impeachment de Dilma Rousseff”: “Não se pode confundir operação de crédito, que tem um regramento jurídico próprio, inclusive quanto à vedação contida no artigo 36 da LRF, com o nascimento de um crédito em decorrência de um inadimplemento contratual, que, obviamente, não sofre as mesmas restrições” [22]. As operações de crédito assumidas por pessoas jurídicas de direito público limitam-se àquelas previstas no art. 3º da Resolução 43/2001 do Senado Federal [23].
Além disso, conforme se extrai do inciso VI do art. 85 da Constituição Federal, o objeto tutelado pelo crime de responsabilidade no caso aventado é a Lei Orçamentária, e não a Lei de Responsabilidade Fiscal, que sujeita os responsáveis a outros tipos de sanção. Violar a Lei de Responsabilidade não é e não pode ser o mesmo que violar a lei orçamentária, sob pena de se desvirtuar as finalidades do sistema jurídico, uma vez que os tipos legais se interpretam restritivamente. Ou nas palavras de Lodi: promoveram-se verdadeiras “pedaladas hermenêuticas” [24].
O Ministro Brossard aponta que “no processo de impeachment não é fácil estabelecer limites entre o discricionário e o não discricionário, tão entremeadas são as questões com uma e outra característica, alternadamente postas em relevo por quem entre a analisar o instituto” [25]. O Estado de Direito não permite interpretações ao sabor das circunstâncias. Em assim procedendo, o Estado não mereceria tal adjetivação. Isso não implica, contudo, em defender esta ou aquela posição partidária ou ideológica. O objetivo é, sem dúvida, muito mais simples: clamar que se repeite a legalidade!
Victor Cezar Rodrigues da Silva Costa é Mestrando em Direito Penal pela UFMG eAdvogado Criminalista.